Família

Adão; Adão e Eva; Adão, Eva, a Cobra; Adão, Eva, a Cobra, Caim e Abel. Nascia, então, o grupo que viria a se chamar Família, que muitos anos mais

28/10/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Adão; Adão e Eva; Adão, Eva, a Cobra; Adão, Eva, a Cobra, Caim e Abel. Nascia, então, o grupo que viria a se chamar Família, que muitos anos mais tarde seria definida no Google como ‘o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar’.  Fiquei em dúvida. Meus filhos e eu não moramos mais na mesma casa: ainda constituímos ou não, uma família? Nunca tive parentesco algum com meu marido, mas vivemos, até em harmonia e desde algum tempo, na mesma casa e, em certa época, com todos os filhos que fizemos. Estaríamos dentro da definição? Meus irmãos, suas respectivas famílias, mais as famílias de meus filhos e eu, moramos em cidades diferentes; nossos pais já partiram, mas quando nos reunimos e conversamos entre nós, é como se laço forte nos atasse num feixe com alguma coisa também invisível em comum, por intermédio de alguma cola especial... Que nome dar a esse fenômeno? 
 
Sempre que minha irmã que mora longe vem nos visitar, sentamos em torno de mesa cheia que faz o papel da fogueira ancestral e nos pomos a lembrar de experiências em comum que tivemos. Relembramos cenas de nossa infância e adolescência; conversamos sobre dores que se abateram sobre nós e sobre pessoas que amávamos; esclarecemos dúvidas e assuntos que ficaram insolúveis e escondidos por muitos anos. 
 
Damos boas risadas dos bons momentos. Compartilhamos opiniões sobre assuntos antigos ou atuais; reconstruímos personagens em comum das nossas vidas; modificamos conceitos que pensávamos arraigados. Voltamos a pensar em situações e experiências das quais nem nos lembrávamos mais e que ficaram anos, à espera de oportunidade de serem revistas. Riquíssima vivência.
 
Nessas horas sinto pena imensa de quem não tem irmãos com quem dividiu a vida no passado. Desde crianças já mostrávamos personalidades muito diferentes. Ela é doce, eu sou pimenta. Ela é um manso regato, eu sou a cachoeira selvagem. Ela é o suave entardecer; eu sou a tempestade. Ela é a gardênia; eu sou a maria-sem-vergonha. Ela poderia posar para a escultura de algum anjo; eu ficaria ótima como decoração de festa do Halloween. Todavia somos amigas. Mais que isso, somos cúmplices, como todas as irmãs que nasceram e cresceram em lar modesto, mas comandado com mãos seguras e amorosas, como foram as de nossa mãe. Tivemos infância difícil. Em termos econômicos, nenhum dos nossos descendentes sequer imagina como era sonhar com boneca e ganhar vestido; cobiçar carro de controle remoto e receber caminhãozinho artesanal cujas rodas, por serem de madeira, costumavam emperrar quando chovia. Hoje acham o máximo atravessar o lamaçal dentro do jeep no passeio radical, entretanto nem sonham como era morar na ladeira sem calçamento. Vai entender, nosso olhos marejam quando nos lembramos do que poderiam ser chamadas tristes recordações, mas que chamamos meros detalhes. 
 
Nesses momentos de reminiscências levantamos, desvendamos e, por vezes, esclarecemos mistérios familiares. Não, a avó materna não tinha qualquer parentesco ou ascendência negra, apesar do formato da boca. Sim, o bisavô materno acabou com a fortuna que amealhou, por causa de jogo. Alguns relatos sobre o bisavô paterno sugerem, mas será que vieram dele alguns traços de personalidade que apresentamos? Como seria fisicamente nossa bisavó paterna? Nossa avó paterna era uma fortaleza, apesar da aparência frágil, nos certificamos. 
 
Recentemente, numa rara oportunidade, nos reunimos, minha irmã, o irmão caçula e eu, no primeiro encontro depois do luto pelo irmão mais velho cuja presença misteriosamente podíamos sentir. Subitamente me dei conta do significado de família. Não moramos mais na mesma casa, somos irmãos, mas não é a consanguinidade que nos caracteriza como família. São as lembranças em comum. Faz-se necessário redefinir o conceito. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 
 

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