Soube o que era palimpsesto quando o livro de memórias com esse título escrito por Gore Vidal em 1996, veio parar em minhas mãos. Chama-se Palimpsesto o antigo, caro e escasso material de escrita, um tipo de pergaminho, que era usado mais de uma vez depois do processo de raspagem do texto anterior, o que não eliminava totalmente vestígios e provas da gravação anterior. Tenho os meus palimpsestos guardados em casa. Embora sejam denominados assim, os textos anteriores não foram eliminados, servem de orientação para os registros posteriores. E não são papiros, são livros de memórias que, espero, no futuro despertem curiosidade de descendentes, que não sejam alérgicos ao pó.

 

Guardo livros de capa dura nos quais, por anos, registrei reuniões realizadas em casa. A primeira no ano do meu casamento. Abro o livro com anotações da primeira efeméride doméstica, que foi o aniversário do dono da casa. Feministas xiitas sentiram, e as poucas que resistem, sentirão cheiro de machismo, submissão e sujeição subjacentes nas vidas das mulheres de então, pois a iniciativa era minha,  começar o livro com registro do masculino?

 

Mas, dizia, registrava as reuniões familiares no caderninho de capa dura, principalmente as reuniões domingueiras, feitas quando ainda não existiam ranchos ou clubes à beira das represas. Nos sábados e domingos ensolarados era bom receber os amigos com filhos da mesma idade que os nossos. Bem mais tarde, tentei substituir o livro pelo computador e, ao perceber que todo o charme do registro se esvaía, voltei ao papel e caneta. Para organizar, ótimo; para registrar, nada como a tradição. Em cada registro, com variações na letra e cor da tinta da caneta utilizada, encontrei anotações curiosas. Primeiro os dados fundamentais: número e nome das pessoas, relação das comidas, bebidas, as providências para viabilizar o encontro. Datas devidamente marcadas e com direito a desenhos mirabolantes em torno — como decorações gráficas — e sublegenda adequada: Jantar, Aniversário, Visita de Fulano, de Sicrano, Réveillon, Natal, Páscoa. Quando se tratava de aniversários, listagem dos convidados ‘fixos’ — parentes e amigos, seguidos pelos nomes dos amigos pessoais do dono, ou dona da festa. As de Natal são lembranças particularmente saborosas. Há a relação dos comes e bebes — aquele despropósito, seguida pela de presentes, outro despropósito. 

 

Tornaram-se livros de memórias — minhas e da família. Folheando-os, percebo a permanência de nomes que atravessaram conosco a passagem do século; de outros que, embora mencionados algumas vezes, desapareceram e até foram esquecidos. Nomes dos que já se foram, de outros que surgiram e continuam. Dá para acompanhar casamentos desfeitos dos amigos e novas configurações de casais. Percebe-se a evolução das famílias, como casal, o mesmo casal e um filho, o mesmo casal e dois, três filhos, o mesmo casal e cinco filhos (nasceram gêmeos). Emoção pura. Principalmente porque o primeiro livro termina e outros, do mesmo tipo e capas diferentes, também duras, outros palimpsestos, continuam a registrar nossa saga. Se os nomes mudam, cardápios revelam acuro e evolução do nosso paladar (e bolso). E muita surpresa nas comemorações: quando comecei, nem imaginava que iria registrar aniversário de um neto, quanto mais de seis. 

 

O hábito persiste, há décadas permanece, o que vem provar, principalmente a mim mesma, que não sou tão leviana e inconstante nos meus hábitos. Que adoro juntar gente para festejar o que quer que seja. Que, para juntar, preparo com carinho os pormenores. Que já passou muita gente por nossas casas e vidas dos familiares. E que eu devia ter feito um relato escrito, mais pormenorizado, descrevendo as emoções daqueles momentos fantásticos desfrutados com quem já foi e, por um motivo ou outro, não voltou mais.

 

 

Lúcia Helena Maníglia Brigagão

jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br