Nicola, meu pai

Talvez tenha sido ali por volta dos oito ou nove anos, talvez antes; com certeza depois não foi, quando descartei a intenção de me casar com

12/08/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Talvez tenha sido ali por volta dos oito ou nove anos, talvez antes; com certeza depois não foi, quando descartei a intenção de me casar com meu pai. Até ali, à pergunta com quem iria me casar, a pronta resposta era “com meu pai”. Primeiro, porque era o homem mais bonito do meu universo; segundo porque eu o amava. 
 
Hoje não sei se ele era realmente o homem mais bonito do mundo, embora suas fotos que me olham através do vidro dos porta-retratos, mostrem transparente par de olhos azuis, sorriso capaz de derreter as portas de aço do meu coração, cabelos claros despenteados, cabeça meio descambando para o lado, mãos nos bolsos, camisa branca, calças largas, tudo sugerindo alegria interna e descontração, que por si só já é coisa bonita de se ver. Meu pai era homem bonito. Bonito, simples, sem frescuras, avesso a reuniões sociais, permanentemente disponível para idas à beira de rio. Qualquer rio, aliás: Sapucaí, Pardo, Grande, Xingu ou Araguaia. 
 
Dizem, era a alegria de qualquer turma que se formasse para enfrentar o desconhecido, fosse esse mais próximo, nas Minas Gerais, fosse nos confins do Mato Grosso ou Goiás, distantes e muito pouco explorados naquela época: essas lembranças datam dos anos 50 e 60. De dar gosto vê-lo tomar a iniciativa de montar equipe, fardo e tralha de pescaria. Levavam caminhões cheios de carne, arroz, feijão, cerveja, cachaça, basicamente. Levavam barracas, candeeiros, lampiões, lanternas, redes, mesas, cadeiras, cortinados, bússolas, caixa de primeiros socorros. E armas de fogo. Justificava o cuidado: preocupação com animais selvagens e eventuais ataques de índios, embora jamais tenha relatado qualquer façanha envolvendo bichos ou índios ferozes. Contava, isso sim, suas proezas e aventuras - acho que até exagerava para nos comover - como a de quando se perdeu com alguns companheiros no meio da mata por absoluto descuido. Confiantes e inconseqüentes, embrenharam cerrado adentro, perderam-se e se viram sem água e sem comida. 
 
Dizia, foram dar num campo coberto de melancias enormes, por pura sorte. Mataram sede e fome. arrearam um tanto: jogavam as frutas para cima, só para vê-las esborrachar no chão e colorir um pouco a agreste paisagem. Não demorou muito, passadas euforia e saciedade, perceberam sinais cravados nas cascas das frutas. Símbolo desconhecido, espécie de identificação; não eram naturais, eram manuais. Talvez de índios próximos que poderiam cobrar deles tamanha ousadia. A necessidade e medo fizeram-nos encontrar rapidinho o caminho de volta. Suas aventuras, relatos, histórias e casos alimentaram as imaginações dos filhos, principalmente as dos irmãos das pontas, que aprenderam também a gostar de dar saltos rumo ao desconhecido. 
 
Papai morreu cedo, mal chegado na casa dos 50, recém avô de uma menina, ainda forte feito touro. Não resistiu a cirurgia simples. Deve ter ido contrariado, não conseguiu se safar do corte abrupto e seco de sua vida. Dói ainda hoje a ferida que sua morte deixou. E nós, os filhos, ainda a nos divertir com suas histórias, brincadeiras e excessos, nos perguntamos: como ele seria, como avô de treze netos? Teria a mesma disposição para brincar com os bisnetos? Burlaria a vigilância dos adultos e daria sorvetes, doces, bolos, refrigerantes à nossa revelia para as crianças? Contaria para eles as mesmas histórias de terror, que nos contava? Acredito que sim. Tenho certeza que sim. 
 
Pais são alicerces, mananciais, teto e chão. Pais modernos são pães mistura de pai e mãe. Pai que se torna avô, para os netos é negociador que neutraliza a chatice dos pais. Pais, para todos os filhos são heróis. Para os filhos homens, espelhos. Pai, para as filhas, é o único homem que as ama de verdade, incondicionalmente. Tenho muita saudade do meu. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 
 

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