Viuvez

Difícil avaliar quanto possa doer o coração de quem perde o companheira. Dias sombrios se seguem à partida; com a falta do outro sobrevém

29/07/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Difícil avaliar quanto possa doer o coração de quem perde o companheira. Dias sombrios se seguem à partida; com a falta do outro sobrevém a raiva e o sentimento de impotência diante da inexorabilidade, o período de luto profundo, despedaçamento total e tristeza sem tamanho. 
 
A única vez que vislumbrei outro lado desse estado social, do ponto de vista feminino, foi no livro mexicano escrito por Ángeles Mastretta, dramático até no título Arráncame La Vida. E foi através do texto que descreve o momento no qual certa matrona amiga da família, se aproxima de Catalina, jovem heroína central da história, durante o velório de Andrés, seu marido, general importante e rico, alguns bons anos mais velho que ela. 
 
Andrés não fora exatamente flor de cheirar durante a curta vida conjugal deles, porém a morte súbita e precoce do marido a surpreendeu. No velório a jovem viuvinha chorava tristemente, quando a matrona se aproxima e sussurra palavras no seu ouvido, que ninguém mais além dela conseguiu ouvir. Disse-lhe que, passados alguns dias e a dor amainasse, a moça perceberia o outro lado de seu novo estado civil. Com a viuvez Catalina ganhava invejada liberdade com maturidade que lhe permitiria viver sem dar satisfações à família ou à sociedade. E enumera as vantagens da viuvez, estado que ela chama de ideal: a jovem já cumprira a exigência social do casamento, já tivera filhos, herdara boa fortuna que lhe garantiria significativa folga financeira. Estava livre, rica e independente! E jovem.
 
A vida, definitivamente, não imita a arte. Se na ficção o banzo da viuvez de Catalina foi superado, na realidade nem sempre é assim tão fácil ou simples ou leve, quer seja para o homem, quer seja para a mulher: para quem perde o parceiro de vida. 
 
De comum mesmo, apenas a quantidade de avaliações, soluções e palpites que os sobreviventes - familiares próximos, distantes, compadres e até pitaqueiros de plantão, apresentam ao viúvo ou viúva, subitamente elevados à condição de incapazes. Esse MS — Mutirão de Salvamento — toma para si a tarefa de solucionar e resolver a vida daquele que ficou viúvo como se ocorresse, com a falta do cônjuge, embotamento total das qualidades do sobrevivente. O MS impinge ao viúvo ou à viúva sugestões e possibilidades que vão desde mudanças — de casa, atividades, organização doméstica — até opções e perspectivas matrimoniais, por incrível que pareça. Decidem e reorganizam toda a rotina deles de forma autoritária e em nome da boa vontade. 
 
Algumas vezes os filhos jovens ou adultos se tornam tiranos, egoístas e cruéis, quando decidem escolher ou, pior, vetar a escolha do viúvo ou viúva caso eles, passado o luto, encontrem alguém com quem queiram enfrentar o futuro ou dividir a vida que inexoravelmente continua a acontecer no período imediatamente seguinte à dor e ao luto. Descontentamento e muxoxos, no caso de surgirem discrepâncias entre os desejos do viúvo e os da lista do Mutirão de Salvamento. 
 
A ninguém foi dado o direito de arbitrar sobre o comportamento de quem quer que seja, pois que ninguém possui conhecimento do que está no inconsciente do seu semelhante ou dos fatores determinantes de seus desejos, necessidades ou aspirações. Nenhum filho — adulto ou criança — tem o direito de impedir que o pai ou a mãe procure ou escolha novo parceiro de vida e, caso o encontre, busque ser novamente feliz. 
 
Passado o trauma do momento da desestruturação familiar a vida se encarrega de reorganizar a rotina de quem fica e, na dos filhos, principalmente se ainda jovens, o pai ou mãe viúvos terão cada vez menos espaço. O MS se esvaziará, cada membro seguirá adiante. Que a solidão jamais seja a companheira de quem ficou viúvo. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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