Crianças

O primeiro verso de um poema de Fernando Pessoa: ‘A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; mas hoje, vendo

15/07/2016 | Tempo de leitura: 3 min

O primeiro verso de um poema de Fernando Pessoa: ‘A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; mas hoje, vendo o que sou é nada, quero ir buscar quem fui onde ficou.’ Justifica a paixão de tantos adultos por crianças, minha particularmente, e admiração por sua espontaneidade, franqueza e presença de espírito. 
 
Há anos coleciono frases ditas por crianças da família ou copiladas de livros e revistas, que demonstram e provam o nível de seriedade, lógica e complexidade do pensamento infantil. Criança é coisa séria, por mais engraçada que seja. 
 
Quando o governo de um país descobre isso, prioriza a educação, valoriza a escola, coloca professores competentes para ensinar, o país vira uma Dinamarca, Suécia, Finlândia, Islândia ou Noruega. 
 
Se o adulto tivesse hábito de observar crianças reformularia sua maneira adulta e parcial de ver, julgar, avaliar, definir, priorizar pensamentos e atitudes. 
 
Clara faz amiguinho na praia. Idades iguais, o fato de terem nacionalidades diferentes e falarem línguas incompreensíveis entre ambos, não lhes impede a convivência ou compartilhar brinquedos. Dirigem-se aos pais cada qual na língua original, enquanto observam-se mutuamente. Entre eles usam linguagem gestual, algumas frases de suas próprias línguas e ficam horas juntos, fazendo monte de areia, casinhas, castelos. De vez em quando, vão se molhar. Ao ver o diálogo fluente entre mãe e filho estrangeiros, Clara se empolga, levanta-se, vai até a mãe e solta uma série de palavras inventadas na hora, imitando a sonoridade que percebeu da língua do outro. Frase longa de tatibitates, totalmente sem sentido. Entusiasmada, volta-se para a mãe e pergunta: ‘Mãe, o que eu falei?’
 
A babá adoeceu, a mãe disse para as filhas entrarem no carro, iriam levar a babá ao posto. Dúvida: ‘Se puser gasolina nela, ela sara, mãe?’. ‘Não suporto ver seu quarto bagunçado!’, reclama a mãe. Resposta do filho: ‘Então apaga a luz, mãe!’. Vingança: ‘Vó, quando eu tinha oito anos de idade, o cachorro do Zé (vizinho) vivia fazendo cocô no jardim de casa; um dia eu fiz cocô no jardim dele!’. Dois bilhetes. Bilhete um: ‘Estou com raiva de você e não vou falar com você hoje e amanhã. PS: o dia todo. PPS: Eu ainda te amo.’. Bilhete dois, nos moldes dos escolares, deixado na cabeceira da cama da mãe que ralhou com ele: ‘Acho que você não gosta mais de mim. Escreva abaixo Sim ou Não, e assine, por favor.’ Francano engole o ‘s’ das palavras no plural. A avó alertou que a netinha devia colocar sempre o s no final de cada palavra, quando fosse o caso. Assim: ‘a casa, as casas’; ‘a boneca, as bonecas’. Estavam no jardim, passarinhos se aproximaram. A menina se entusiasmou: ‘Olha, vó, os passarinho’, olhou para a avó e completou: ‘ssssss’. 
 
Elas foram à feira, a avó pergunta ao feirante: ‘Por favor, quanto custa a caixa de uvas?’ À resposta, a neta emendou: ‘E sem a caixa?’. Na padaria a funcionário gentil ofereceu ao menininho pão de queijo recém saído do forno. Depois que ele comeu, a avó lembrou-lhe de agradecer à moça pela gentileza. ‘Como fala para ela?’. Sem hesitar, ele respondeu: ‘Me dá outro?’. 
 
Se pudéssemos resgatar a criança criativa e simples que fomos um dia; se voltássemos a ter olhos que enxergam a verdade por trás de todas as situações; se conseguíssemos falar qualquer verdade, mesmo a mais dura delas, sem ofender pois dita espontânea, franca e sinceramente; se alcançássemos o alto grau de complexidade do pensamento infantil, mesmo que aparentemente simples ou a perspicácia para analisar o lado oculto e intangível de tudo que nos parece real, o mundo seria um lugar mais agradável de se viver. Adoro criança! 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 
 

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