Poucas cidades me impressionaram tanto quanto Estrasburgo, capital da região administrativa da Alsácia e sede francesa do Parlamento Europeu. Sua fundação data de 12 a.C.. No século V a região foi incorporada ao Império Franco. (Por essa ocasião talvez o Brasil fosse parte da lendária Atlântida.)
Mais tarde, em 1681, já cidade livre e autônoma do Sacro Império Romano-Germânico, viu-se anexada à França. Após a Guerra franco-prussiana, em 1871, volta a pertencer à Alemanha. Ao terminar a Primeira Guerra Mundial, em 1919, passa a pertencer à França para, novamente, ser parte da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. No final, retorna à França, desta vez definitivamente. (Mais de 2000 anos de história).
Estrasburgo, como outras cidades francesas, foi invadida pelos nazistas no começo da Segunda Guerra, que evacuaram a parte central da cidade, montaram seu QG e submeteram os habitantes a determinações incabíveis: foram proibidos de cantar a Marselhesa, assoviar canções francesas; não lhes permitiam usar a tradicional boina e subitamente se viram obrigados a só falar em alemão.
São tristes as fotos da época, uma em especial, a da praça central enfeitada com a suástica, abarrotada por estrasburgueses assustados, obrigados a ouvir o discurso do general alemão. Esse ir e vir, esse passar de mão em mão, poderia ter destruído a personalidade de Estrasburgo. Todavia, más recordações à parte, acabou por fazer parte de parte do charme da cidade que adotou as duas línguas como oficiais; onde as lojas possuem nomes em ambos idiomas; onde a gastronomia recebeu influência das duas cozinhas. Essa história fantástica de superação constitui a primeira parte da minha excelente impressão.
A segunda, a Catedral de Estrasburgo — Notre Dame de Strasbourg — que era, já entre os anos de 1625 e 1874, o mais alto edifício construído pelo homem. Sua construção começa antes de 1015 talvez enquanto o Novo Continente se formava. Após forte incêndio, em 1176, levantam novo prédio. (O Brasil nem andava.) A colocação da flecha (ou agulha) no topo da torre em 1439, marca 300 anos de construção do edifício. Andar nos seus corredores arrepia: por ali passaram Calvino e Lutero, Goethe e Stendhal. Seu estilo é marcado pela mistura de elementos de várias tendências de arquitetura e as arcaduras externas dão-lhe aspecto de renda mineral, o que fez Victor Hugo usar o adjetivo “delicado” para referência ao prédio e vitrais, que formam composição indescritível. Incrível, também, foi sua capacidade de resistir. Sobreviveu a ataques, a incêndios, a mudanças, inclusive de orientação religiosa. Em 1525, pela influência da Reforma, o edifício se torna luterano. Em 1681, volta a ser católica. Com a Revolução Francesa em 1792, sofre nova transformação. Iluminados revolucionários pretendiam derrubar a magnífica torre octogonal, sua marca registrada. Felizmente não conseguem, mas destroem portas de bronze e esculturas e fazem-na deixar de ser edifício religioso para se tornar “Templo da Deusa da Razão”.
Talvez pela história de resistência e resiliência que garantiram a permanência — tanto da cidade, quanto do edifício — tornada possível pela vontade, critério, ou determinação humana, lembrei-me da minha circunstância de francana e brasileira que convive com a sanha destruidora daqueles que apagam vestígios do passado na nossa cidade e país.
Encontro-me muito distante de casa, mas recebo notícias de que novamente o patrimônio do Palmeirinha, em Franca, se vê ameaçado pelos mesmos gulosos determinados em transformar o histórico local da cidade em dinheiro nas suas contas bancárias.
Pode ser que perto de outras, nossas relíquias sejam pequenas, mas são nossas. É hora de impedir destruição e lutar pela integridade e permanência do que pertence à memória afetiva da cidade. Daqui a 100 — ou mil anos — nossos descendentes nos agradecerão. Os homens passam; suas obras ficam.
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
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