Sonhos

Há anos, amiga querida comentou comigo, entre curiosa e confusa, sobre a troca do meu jipinho vermelho por carro de passeio.

20/05/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Há anos, amiga querida comentou comigo, entre curiosa e confusa, sobre a troca do meu jipinho vermelho por carro de passeio. Na opinião dela, eu trocava o transgressor, irreverente e ousado carro — mais parecido comigo, segundo ela —, por algo elegante, sóbrio, comportado, muito distante da minha personalidade. Aquele, objeto de desejo, sonho antigo, felizmente e muito bem realizado. Este, sinal evidente de submissão às regras. Não entendia a abdicação do sonho pela realidade, suponho. E falamos sobre sonhos. 
 
Ela também tem sonhos. Um, em especial, acalentado escondido, quase secreto, que teve coragem e ousadia de me contar. Discreta, séria, comportada e reservada, ela sonha, quem diria, sair por aí com um vestido vermelho, sapatos vermelhos, unhas também pintadas de vermelho. Simples. Mas para ela, coisa enorme. Desejo. Vontade. Gosto. Um sonho. Tudo isso junto.
 
Ela é tímida, discreta, recatada, ninguém poderia suspeitar que sonha ser, nem que seja por instantes, o estereótipo de mulher fatal. Ela hesitou em verbalizar, vai ver que tomou coragem quando soube que todo mundo tem lá no fundo a vontade de fazer alguma coisa fora dos padrões. Havia gente por perto quando ela, sorrindo, foi contando. Aconselharam-na a procurar o vestido, comprar os sapatos e pintar as unhas — usá-los secretamente em casa, até se acostumar e competentizar suficientemente para enfrentar a opinião alheia. Mas, pensei, isso não é realizar um sonho. Um sonho não é coisa viável, tem componentes diferentes. Sonho é para ousar, voar, ser inusitado, até chocar. Quebrar regras.
 
Ter um carrão, por exemplo, não é sonho. É objetivo. Você coloca o alvo lá na frente, às vezes tão na frente, que não dá para enxergar. Não importa. Você se empenha, economiza, prioriza, batalha, luta e lá um dia encontra a forma de adquirir o carrão. É troca: toma dinheiro lá, dá o carro cá e pronto. 
 
Acho que o diferencial entre sonho e objetivo é a possibilidade de adquirir. Tudo que se pode adquirir (de um modo ou outro, licita ou ilicitamente) não é sonho, passa a ser simplesmente objetivo, por mais distante esteja. Sonho, não. Sonho é fantasia. É o improvável que incandesce. É o proibido que excita. É a contravenção dos costumes ditos normais, ocorrência absoluta e reconhecidamente estimulante. É o chute na mesmice. É a vontade de ser, mesmo não sendo. É ir ‘lá’ e voltar grávida de tanto prazer. Objetivo realizado tem espectadores, tem testemunhas. Serve de exemplo. No sonho realizado há a coincidência e a superposição do passivo e do ativo. Ninguém precisa saber. Podem até ver, mas ele não é público, ele é íntimo. Ele é só seu, por isso é sonho. 
 
O objetivo nunca termina. No caso do carrão, por exemplo. Somos vorazes, conseguindo um carrão, pensamos num outro, depois noutro e outro. No sonho há sempre um fim. E ele acaba quando nos sentimos satisfeitos, inteiros, poderosos, porque tornamos real o que antes apenas supúnhamos poder um dia realizar. E aí é hora de buscar outro sonho para nos superarmos e ir vivendo.
 
Acho que não vivemos de objetivos. Acho que vivemos de sonhos. Viver de objetivos, de alvos, nos leva a ter visão materialista e calculista da vida. Viver de sonhos ou fazer dos sonhos um objetivo de vida é mais corajoso. E mais audaz, porque, se sonhamos, a gente sabe que ‘pode’. Pode voar, pode ser, pode ter, pode querer, pode desejar. Nem que acrescentemos a estas possibilidades todas, o complemento que configura o sonho: ‘um dia’. Um dia eu ainda faço. Um dia eu ainda vôo. Um dia eu ainda subo ao Himalaia. Um dia consigo ter sossego. Um dia eu ainda deito e durmo. Um dia eu ainda deito e rolo... (1995 - Século passado.)
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br

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