Lições

Volta e meia a memória me prega peças. Vivo alguma situação, não importa se frustrante ou gratificante, o momento fica registrado e arquivado. De repente, algum tempo depois - muito

13/05/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Volta e meia a memória me prega peças. Vivo alguma situação, não importa se frustrante ou gratificante, o momento fica registrado e arquivado. De repente, algum tempo depois - muito tempo, pouco tempo - basta algum motivo, um estímulo qualquer, e é como se abrisse alguma gaveta para os pensamentos como que jorrarem lá de dentro. Eles como que emergem, voam. Revivo aquele instante do passado, com riqueza de detalhes que pensava esquecidos. Acho isso surpreendente e estimulante. 
 
Há muitos e muitos anos atrás, quando ainda acreditava em bruxas e Papai Noel, minha família fez uma viagem a Pedregulho. Viagem, sim. Estrada ruim, sem pavimentação, carro lento: demorávamos algum tempo para chegar a qualquer destino programado. Naquele dia saímos de Franca para visitar velha amiga da avó materna. Carro pequeno apinhado: pais, três crianças, avó, mais tralha: laranjas descascadas dentro de lata, galinha cozida quase sem caldo, farofa e, delícia! refrigerantes, que só eram permitidos em viagens, doenças, domingos e feriados.
 
A senhora que iríamos visitar se chamava Floripes, nome singular e incomum. Tiro o pó da lembrança, consigo vê-la a nos esperar no portão. Tinha os cabelos presos num coque de trança, onda na testa. Hoje a imagino muito alta, talvez por revê-la agora como a criança pequena que era então. Recebeu-nos com delicadeza e alegria. Voltei a Pedregulho, não achei aquele endereço, mas ainda me lembro perfeitamente da casa. Era grande, amarela, tinha alpendre, jardim em volta, cerca de madeira baixinha pintada de branco. Trepadeira exuberante cobria mais da metade da cerca e caía feito um babado por sobre ela. Flores de montão, detalhe compatível com o nome da proprietária. 
 
Dentro, a casa era aconchegante, cheirosa e limpa. Limpíssima! Minha mãe já dera aquelas instruções repetidas à exaustão: monte de nãos e nécas e nuncas e jamais. Não era para entrar com os pés sujos na casa. Não era para aceitar tudo e não era para pedir nada. Néca de esquecer de agradecer, néca de mexer nos enfeites. Nunca deixar de pedir licença, jamais deixar de dar descarga no vaso sanitário, caso fosse preciso usá-lo. Como respeitávamos os pais, não devemos ter dado tanto trabalho. Lembrei-me dessa história porque foi, sem dúvida, momento glorioso da minha infância. Todas as vezes, ao passar por Pedregulho, sem que me desse conta e só hoje entendi, respirava fundo e tentava absorver sensação de bem-estar, experimentada muitos anos atrás. Aquele foi, sobretudo, rico momento de aprendizagem. 
 
Por causa dele aprendi a força da amizade. Vovó e dona Floripes achavam tempo de se visitar. Mesmo morando em cidades diferentes, mantinham acesa, e mantiveram por anos, a chama da familiaridade. É possível que nunca tenham precisado de terapeutas: trocavam confidências e segredos, ajudavam-se mutuamente. Com ferramentas que me foram dadas naquele dia construí minha imagem da felicidade: casa solta no meio do terreno, cerca baixinha, muita grama e flores em volta, cortinas nas janelas abertas. Aquele foi um dia muito feliz. 
 
Hoje, ao reconstruir aquele momento, sem invalidar os ganhos de quanto aprendi e quanto minha vida melhorou em tantos aspectos, percebo as perdas que sofri nestes anos todos. Olho os presentes que comprei e que não entreguei aos aniversariantes na hora certa por falta de tempo. Sinto falta de pessoas que não procuro, também pelo mesmo motivo. Ir visitar alguém é impossível, por falta de coordenação de tempo, meu ou da pessoa que iria ver. Volta e meia preciso de interlocutor urgentemente e não o encontro. Ao cruzar com familiares nos corredores de casa, cumprimentamo-nos quase que formalmente: todo mundo tem horários e compromissos inadiáveis. Vi, na rua, cachorro correndo atrás do seu próprio rabo. Saí rindo sozinha: é assim, sem tirar nem pôr, que volta e meia me sinto... 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.