Lembranças

Doces lembranças. Éramos crianças e, como tal, absolutamente felizes. Ríamos fácil; brigávamos por nada; fazíamos as pazes; tomávamos chuva;

08/04/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Doces lembranças. Éramos crianças e, como tal, absolutamente felizes. Ríamos fácil; brigávamos por nada; fazíamos as pazes; tomávamos chuva; subíamos nas jabutucabeiras; comíamos goiaba e manga verdes com sal; andávamos de carrinho de rolemã. Nossas famílias, vizinhas e confinadas em canto sossegado da cidade. Mutirão: tínhamos apelidos e nos conhecíamos por eles. Na verdade nem eram apelidos, eram títulos de reconhecimento. Tinha o ‘Anjinho da Dona Dalva’, de nome verdadeiro, Roberto. Tinha o Marcão, que nem era tão grande era assim. Tinha o Zé Venâncio, um dos quinze filhos da dona Júlia e sêo Astor - entre eles a Margarida, Dalva, Rosinha; e as duas rainhas do bairro a quem chamávamos dona Eda e dona Maria Euzébia - professoras. Das imediações, também, Eny, Margarida e Mário Wilson. Nas ruas laterais, ou no oposto da travessa da rua, estavam Antônio Sérgio, Ariovaldo e Leda, os irmãos Carmen Lúcia e Fonseca; a encrenqueira dona Oércia, os filhos; sêo Bento, dona Inês e Regina, filha que ele perderia muito mais tarde. Verdadeiro gueto, aquela Vila Flores. 
 
Chovia, era festa. Depois do toró as mães descuidavam, íamos para a rua brincar no barro. Naquele dia o banho começava no tanque de lavar roupa, lado de fora da casa, com sabão de cinzas, bucha vegetal e água fria da mangueira. Só depois da faxina é que entrávamos para o banho na banheira, com sabonete Lifebuoy. Aprendemos a mergulhar no Córrego dos Bagres, que passava mansamente no fim da ladeira, ou rua onde morávamos. Minha mãe e a vizinha da frente, dona Elza, eram como irmãs, daí a proximidade dos filhos ser ligeiramente maior. Foi este o cenário da minha infância, dos meus irmãos André e Maria Helena, da Fernanda e do Mazo - Adhemarzinho naquela época. Amigos e vizinhos iam e vinham, mas nós permanecíamos. Fotos de família tiradas naquele período mostram duas loirinhas, dois meninos, uma menininhazinha com laços na cabeça sentada no muro, talvez para não sujar os sapatos e meias na poeira: era a Nanda, que sempre foi a delicadeza em pessoa. 
 
Crescemos. Lá pelos nossos quinze, dezesseis anos, era chegada a hora de aprender a tocar qualquer instrumento musical. Adhemarzinho e eu optamos pelo violão e as mães nos arranjaram professor, quase da nossa idade. Ele chegava pontualmente, dava aula, ia embora e nos deixava praticando até à exaustão. Talvez por vingança pelos dedos cheios de bolha, talvez por farra mesmo, resolvemos dizer ao professor que fumávamos maconha, coisa proibidíssima, coisa de marginal naquela época. Arregalou os olhos, parou de respirar ao confessarmos. Duvidou, mostramos a prova: pacotinho cheio de folhas de árvores das imediações, bem secas e bem amassadas. Perguntamos se ele queira experimentar. Nunca! Jamais! Vocês estão loucos! À revelia dos clamores montamos cigarro numa folha de papel de embrulho, pusemos a mistura de folhas dentro, acendemos na frente dele. Aspirávamos e soltávamos a fumaça enquanto dizíamos ‘Nossa!’. Ele só olhou. Na aula seguinte chegou ressabiado e confessou: queria experimentar. Montamos outro cigarro, acendemos, demos para ele mas só depois que fazê-lo prometer ficar em silêncio e jamais nos dedurar. Achou o máximo: disse que nunca ter experimentado nada melhor! Maravilha! Apesar da sacanagem, sou muito grata àquele professor que deu condições para Mazo e eu virarmos muitas noites sob luas e estrelas com música ao fundo. 
 
Doces experiências vividas e experimentadas. Muitas daquelas antigas amizades atravessaram o milênio, embora muitas outras daquelas pessoas do antigo entorno tenham lentamente se distanciado, a ponto de muitas nem mais se reconhecerem hoje. Por mim, gosto de trazer de volta tais lembranças e, ao fazê-lo, concluo ter chegado a uma fase na qual posso afirmar que quase tudo do melhor da minha vida aconteceu no século passado. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 
 

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