Filmes

Nos instantes que antecedem a morte o moribundo reveria, como se fosse numa tela e projeção acelerada, o filme que reproduz a história de sua vida. Nos mínimos detalhes.

15/01/2016 | Tempo de leitura: 3 min

Nos instantes que antecedem a morte o moribundo reveria, como se fosse numa tela e projeção acelerada, o filme que reproduz a história de sua vida. Nos mínimos detalhes. Voltariam à lembrança, e em ordem cronológica, situações vividas e experimentadas. Amores, desamores, desafetos, coisas boas e más, boas e más ações, belos e feios feitos. Sem truques na edição e em ordem cronológica. Alguns, dos que foram mas voltaram à vida, relatam . Teria a função precípua e ideal de acertar contas talvez com Deus, quem sabe com ele mesmo, concluir se viveu bem ou mal, se fez diferença ou não, se ele valeu a pena ou foi apenas mais um, na multidão.
 
Treinos para essa magnífica produção cinematográfica individual e final, a vida e o cotidiano favorecem situações semelhantes. Cada pessoa tem sua particular, peculiar e extensa lista, mas são comuns desencadeadores de recordações que se tornam vivas quando evocadas, coisas como objetos guardados, quase escondidos, subitamente encontrados num canto do armário, na gaveta do criado mudo, na caixa sobre o guarda-roupas. Vestidos, ternos ainda com resquício de perfume quer seja pendurados, quer dentro da mala que não serve mais para viagens. Ficam ali, quietas e mudas, como que no aguardo de seu destino final. Folhas de árvore ou flores secas guardadas entre páginas de algum livro, fotografias que congelam instantes preciosos e mostram sorrisos de gente que nem ri mais. O cheiro de alguma comida ou perfume no ar, o gosto de alguma comida. Tanta coisa, até papel de bala. Na verdade, paladar, olfato, tato, visão, audição se mobilizam separada ou conjuntamente para trazer lembranças boas ou más, não importa. Momentos significativos armazenados, subitamente trazidos de volta do limbo onde se encontravam. 
 
Volta e meia o acaso promove encontros entre pessoas. Ao cruzar a rua, entrar ou sair de algum recinto eis que se fica frente a frente com amigos que se afastaram; familiares consanguíneos ou por afinidade que se tornaram distantes; professores que nos marcaram em momentos importantes; vizinhos que se mudaram e nunca mais foram vistos; ex-alunos que inacreditavelmente cresceram, estudaram, se tornaram adultos e profissionais reconhecidos; ex-funcionários que participaram de nossa intimidade. Pessoas inesquecíveis, pois que marcaram nossa vida com doçura, ou a ferro. Ou fogo. 
 
Todavia nada se compara ao fortuito encontro entre pessoas que se amaram desesperadamente e que, sabe-se lá por que motivos, se separaram. Se o amor se esgotou, resta incômoda lembrança e ligeiro constrangimento. Se há resquícios da antiga paixão, o encontro até pode reacender a velha chama. De qualquer forma, na mesma hora ambos sentem como se tivessem levado forte safanão, experimentam incômodas extra-sístoles, bambeira nas pernas, frio no estômago, falta ar. Se as reações ocorrem separadamente, provocam arrepios de prazer ou desconforto. Juntas, dão origem a faíscas e podem levar tanto ao orgasmo quanto ao enfarte. Tais reencontros e decorrentes emoções costumam render lindos sambas-canções, tangos, baladas sertanejas e pungentes valsas, cujas letras que oscilam entre Chuvas de Verão, Ex-amor ou Se te pego com outro, te mato. Renovam sentimentos e ressentimentos, aceleram o coração. Como deixá-las sair do fundo do armário faz desabrochar lembranças, reacendem o sabor de grandes momentos vividos no passado e trazem de volta situações que temperaram a vida. Se Jobim diz que é ‘desconcertante rever um grande amor’, pode-se acrescentar que não raro é complicado e até cruel.
 
Viver é morrer um pouquinho todo dia e nessas oportunidades são produzidos milhares de curta metragens, quiçá treinos para a produção daquele grande filme da hora da nossa morte. A sábia natureza nos prepara emocionalmente, ao promover estes encontros, para um dia sermos protagonistas e espectadores de particular espetáculo, quando o show terminar de verdade. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br

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