Natais

Filha de jovem casal pobre, somente conheci festas fartas de Natal já grandinha. Na verdade, as lembranças ganham nitidez somente a partir

18/12/2015 | Tempo de leitura: 3 min

Filha de jovem casal pobre, somente conheci festas fartas de Natal já grandinha. Na verdade, as lembranças ganham nitidez somente a partir da minha primeira década, nos primeiros anos do curso primário. Morávamos na periferia da cidade: exatos quatro quarteirões ladeira abaixo da Igreja Matriz. Rua despavimentada; casa de planta popular sem calçada, com cercas laterais de madeira pintadas de branco, por onde subia trepadeira conhecida como Amor Agarradinho, escolhida talvez pela semelhança de nome com o comportamento amoroso dos meus pais. As janelas tinham cortinas de renda cheia de babadinhos, feitas por mamãe. As colchas das camas, costuradas por ela na máquina Elna, eram coloridas. Não tínhamos tapetes, móveis de madeira nobre, os sofás da sala eram sofás-cama que acolhiam eventuais hóspedes: os filhos, que lhes cediam os quartos, dormiam na sala. A casa tinha chaminé. Dali saía fumaça, não da lareira, mas do fogão de lenha.
 
Nos dezembros, o passeio dominical costumeiro - ir à praça central, percorrer as vitrines das lojas das ruas centrais de comércio, tomar sorvete e ouvir a banda - era acrescido com a ida à Casa Bettarello para ver os brinquedos que, se fôssemos obedientes, educados, respeitosos e estudiosos durante o ano todo, talvez o Papai Noel nos trouxesse na Noite de Natal. Um mínimo deslize e perdíamos o direito de ganhar presentes. Era o que ditava o protocolo familiar da época, cumprido à risca por pais e filhos.
 
Não íamos à Missa do Galo. Mamãe, depois de entregar todas as encomendas - bolos, tortas, doces e costuras - para as freguesas, começava os preparativos da grande ceia. Primeiro nosso banho com sabão de cinza e mangueira de água fria lá fora, que tirava a sujeira grossa acumulada na pele pelas brincadeiras na rua poeirenta; depois o banho propriamente dito, sob o chuveiro dentro da banheira, com sabonete Lifebuoy. Papai se aprontava, enquanto mamãe nos dava banho, trocava nossa roupa, nos penteava, punha laços de fita, meias brancas nos pés de todos. Compulsoriamente éramos sentados sobre a mesa da sala, vestidos e descalços, o que nos impedia de descer, pisar no barro, sujarmos. Só então mamãe tomava seu banho, punha vestido bonito, enfim nos calçava e descia da mesa. Cantava uma catilinária inteira, ficávamos na sala, sob a vigilância de papai. Ela buscava e trazia da cozinha lá fora frango assado, macarronada, bolo recheado (não era de nozes), os raríssimos refrigerantes, doces. Por ser noite de gala, preparava bandeja enfeitada com extravagâncias natalinas: cinco nozes, cinco avelãs, cinco amêndoas, cinco castanhas portuguesas. Uma de cada (cara) delícia, para cada um. Excessos perdulários natalinos, que ela exigia que conhecêssemos. Era assim nossa ceia na noite de Natal. Íamos dormir excitadíssimos, acordávamos cedinho, abríamos os pacotes: vestidos, sapatos, bolsas de escola. Bonecas mesmo que não fossem de porcelana com olhos móveis, eram festivamente recebidas. O irmão ganhava caminhãozinho de madeira, sem corda ou controle remoto. 
 
Meio século! Aquela rua está asfaltada. A casinha foi derrubada e o espaço que ocupava, a exatos quatro quarteirões abaixo da Catedral, faz parte do perímetro hoje chamado Centro. Estritas dietas alimentares dos convivas contrastam com mesas fartas de guloseimas. Não há chaminés fumegantes, mães habilidosas ou pais vigilantes. Desapareceu qualquer alentador traço de Esperança que acenava perspectivas de mudanças sociais. As gerações posteriores que trabalharam, lutaram, conseguiram honrosa e nítida ascensão social sem jamais recorrer ou depender de subsídios do governo vê hoje o Brasil dividido em duas classes sociais o povo e os políticos. Muitos trabalham para pagar impostos, poucos usufruem. Perdemos a vergonha, toda a esperança, tornamo-nos coniventes, estamos em profunda depressão e abúlicos. A falta de vergonha toma conta do país. O Natal? O Natal não mudou. Nós é que não somos mais os mesmos.
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 

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