Ciranda

Ele trabalha como empacotador no estabelecimento hortifrutigranjeiro. Parece beirar os trinta anos. Quando chego, ele pergunta

06/11/2015 | Tempo de leitura: 3 min

Ele trabalha como empacotador no estabelecimento hortifrutigranjeiro. Parece beirar os trinta anos. Quando chego, ele pergunta se trouxe as caixas de plástico para colocar as compras. Sim, ele pede as chaves do carro e vai buscá-las no estacionamento. Não, ele providencia outras, de papelão, para acondicionar minhas frutas e verduras. Perguntei sobre ele e ele contou que mora no centro, em quarto de pensão, junto com o filho de cinco anos, que foram abandonados pela mulher. Vivem bem, afirma. 
 
O menino tem lugar onde ficar, está em uma creche, é bem tratado, alimentado, vai cedinho e o pai o busca no final da tarde. Nos domingos e feriados vão juntos à praça, tomam sorvete, passeiam, se divertem. 
 
Durante a semana o menino toma suas refeições na creche; ele come no emprego mesmo. Diz que é feliz, que não se casará novamente, que o filho há de ter vida melhor no futuro e que, com certeza, vai estudar. 
 
Ela é manicure. Nova ainda: está no meio da década dos trinta. Separou-se do marido, com quem teve cinco filhos, cujas idades vão de três a treze anos. Os dois mais novos estão na creche. Dois vão para a escola e ficam lá até mais tarde. O mais velho, vai para casa, cuida dela, estuda, pega os irmãos e espera a mãe chegar do trabalho. Ela sai do salão, recolhe os pequenos, vai para casa, limpa, organiza, planeja o dia seguinte. Não perguntei, mas devem morar em imóvel alugado, talvez tenham televisão, não devem ter computador, ou Ipad, ou vários celulares, muito menos Iphones, ou telefones fixos em casa. Não têm carro, nem outro veículo motorizado. Vão e voltam a pé ou de ônibus. Perguntei, sim é ela quem cozinha. Tudo está muito caro, mas consegue manter as crianças bem alimentadas com frutas, legumes e carnes. Uma das crianças, quando vê carne vermelha na mesa pergunta se é macia. Não é. Então ela não come, e a mãe substitui a proteína de outra forma. Ainda bem que é excelente profissional e tem emprego, re
conhece. Trabalha muito, mas mantém a família unida. Tem medos: principalmente de traficantes de drogas que podem abordar os filhos que já estão avisados sobre o perigo deste tipo de assédio. Controla os horários dos filhos, nos finais de semana saem juntos, ela monitora e sabe onde eles estão nos vários horários do dia. Não, à noite eles não saem. Ela sorri o tempo todo, é leve como pessoa. 
 
A moça desce do carrão na porta da escola nervosa, tensa e de cara feia. Fica parada, de braços cruzados esperando que as duas crianças pequenas desçam do carro, bastante alto, por sinal. Não abre a porta, mostra-se impaciente. As crianças conseguem descer com alguma dificuldade, mas deixam para trás as mochilas pesadas, marca famosa e cara, cheias de produtos de primeira necessidade como Iphone e Ipad. Um para ligações de emergência, outro para ver desenhos no Youtube. Usam boné de grife, calçam tênis importados, usam cabelos com esmerado corte. A mãe fica olhando, eles caminham sozinhos entre os carros do estacionamento. A mãe cumprimenta efusivamente alguém com as mãos, não se despede das crianças que ficam olhando para ela, até entrarem sozinhas pelo portão da escola. O rosto dela se desanuvia: acabou de combinar academia, depois dará um jeito no cabelo, tomarão café no shopping e aí, que droga! é hora de buscar os chatinhos de novo. 
 
Vida louca vida. O que um faria no lugar de outro, caso pudessem trocar as situações? O que a manicure faria, se pudesse trocar de lugar com a moça do carrão? Será que a moça do carrão imagina que existe vida como a do rapaz da loja de verduras? Difícil saber. Vida louca vida. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 

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