Ex-amor

Ele contava que ela era a mulher mais linda que já vira. Descrevia-a. Alta, loira, magra, dentes perfeitos, seios fartos, cintura fina, pernas

16/10/2015 | Tempo de leitura: 3 min

Ele contava que ela era a mulher mais linda que já vira. Descrevia-a. Alta, loira, magra, dentes perfeitos, seios fartos, cintura fina, pernas torneadas, perfeitas. Conheceram-se muito jovens, durante a Segunda Guerra Mundial. Tragédia. Ele, tenente do exército inglês, atingido, precisou de cuidados. Ela, enfermeira voluntária da França, cuidou dele por algumas semanas. Ele foi desligado tão logo a guerra acabou. Voltou para casa. Ela deve ter continuado suas lides e desapareceu, na confusão do pós-guerra, sem deixar vestígios. Ele nunca a esqueceu. Levaram suas vidas adiante. 
 
Ele, envolvido em se recuperar física e emocionalmente, nunca mais voltou. Ela sumiu na nuvem de silêncio e, aos poucos, tornou-se lembrança difusa. Só era real quando ele olhava a rosa vermelha, seca e mumificada, nascida como por milagre em meio aos escombros da guerra que ela lhe dera, junto com a foto em preto e branco, picotada nas laterais, foto que perpetuava a juventude da mulher linda e exuberante que habitava seus sonhos. 
 
Resolveu procurá-la, depois de muita pesquisa com fotos, descrições, detalhes sobre a região da França onde lutara. No meio de nomes de cidadãos que ajudaram durante o tempo de horror, o dela estava entre eles, uma surpresa! Ensaiou, pensou, decidiu: iria procurá-la. 
 
Não deu muitos detalhes de sua viagem aos filhos, embora eles se mostrassem preocupados com a saída do pai de sob seus olhos: ele já não era exatamente um mocinho, embora carregasse com louvor seus setenta e poucos anos e tivesse resistido muito bem à perda da esposa, companheira de muitos anos. 
 
Os filhos até se entusiasmaram com a súbita vitalidade do pai que saiu, comprou passagens, fez a mala. Nela, só colocou suas melhores roupas. Queria causar boa impressão quando ela abrisse a porta e o olhasse atrás do enorme buquê de rosas vermelhas que, por certo, ele levaria, sonhava. Ela seria casada? Perguntou-se. E temeu. Logo se tranquilizou. Iria atrás dela assim mesmo. Se fosse casada, ele voltaria frustrado. Mas tiraria a novela da cabeça. 
 
Foi embora para a França. Atravessou o canal da Mancha. Durante o vôo conversou e contou sua história para a moça sentada ao seu lado no avião, que se emocionou com a descrição daquele amor platônico que atravessara o século e permanecia fresco e intenso. Torceu por ele. E só não o acompanharia porque tinha compromissos inadiáveis na capital, disse. 
 
Ele chegou a estranha cidade, ponto de conexão com o trem que o levaria até o destino final. A espera lhe pareceu longa. Viajou poucas horas e chegou ao destino. Quase não reconheceu a cidade. Estava linda, totalmente recuperada. Reconheceu o monumento no centro da praça redonda, conheceu outro no centro da fonte, erigido em homenagem aos combatentes e heróis da resistência daquela famigerada guerra. Sentiu-se homenageado. 
 
Chegou à praça central, logo após a subida que fez menos lépido do que a última vez que passara por ela. Perguntou para muitos moradores sobre a mulher e eles, embora curiosos e desconfiados, indicaram-lhe caminhos e direções. Por fim, chegou à porta. Respirou fundo, encheu o peito de coragem e bateu. Tentou camuflar-se atrás do buquê de rosas vermelhas, já mais vermelho que elas. 
 
A porta se abriu lentamente. Sonhava? Ele abriu os olhos. Estava diante da velha mais feia que jamais conhecera. Magérrima, aparência descuidada, roupas mal ajambradas, sem dentes. Parecia bruxa das histórias dos livros infantis que lia para os netos. 
 
Não lhe perguntou o nome. Foi embora sem sabê-lo. Teve medo. Se fosse ela, a dos seus sonhos, não suportaria a transformação. Se não fosse, melhor continuar sonhando, decisão que subitamente tomou. No sonho as pessoas se transformam como a gente quer, explica. Elas envelhecem lindamente. E é desconcertante rever um grande amor, descobriu. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 
 

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