O francanês

Na edição de 2 de outubro de 2002, publiquei parte deste texto. Relendo-o, verifiquei que quase nada se modificou na fala do francano da gema.

30/11/2014 | Tempo de leitura: 4 min

 “As feridas da língua portuguesa vão se abrindo lentamente toda vez que violentamos sua ortografia.”.  
 
Teresa Teth, escritora brasileira
 
 
Na edição de 2 de outubro de 2002, publiquei parte deste texto. Relendo-o, verifiquei que quase nada se modificou na fala do francano da gema. Resolvi republicá-lo agregando alguns exemplos novos, em plena semana de aniversário da cidade.
 
Franca tem sido um exemplo interessante de região geográfica em que a língua portuguesa sofre alterações de modo marcante.
 
Situada a pouquíssimos quilômetros da divisa com o sul de Minas Gerais, incrustada no extremo nordeste do Estado de São Paulo, recebe as influências culturais de Minas, Goiás e de todo o interior paulista que a cerca; não haveria como Franca esquivar-se de comportamentos sociais, culturais, linguísticos desta região.
 
Os exemplos multiplicam-se.
 
É comum entre nós “engolir” os sufixos diminutivos. Falamos “passarim” em lugar de passarinho. E assim se dá com “bunitim”, “espertim”, “mininim”, “tadim” em vez de coitadinho.
 
Nos agradecimentos, temos uma resposta especial para “Obrigado”. As respostas comuns seriam “por nada”, “não seja por isso”, “foi um prazer”, “obrigado(a) eu”,  mas o francano insiste em articular um descortês “obrigado você!”, como a dizer “sim, você se encontra na obrigação de me devolver o favor que lhe fiz!”  Como este detalhe rende assunto numa sala de aula!
 
Às vezes, a coisa pega pela sintaxe. Tenho ouvido em reuniões formais ou em encontros descontraídos com amigos uma construção frásica que vai se tornando típica de nossa cidade. Consiste no seguinte: o emissor, querendo pluralizar uma frase, ele o faz levando apenas a primeira palavra da frase ao plural, deixando todo o resto no singular. Lei do menor esforço. É uma graça... Uma incômoda graça. Por exemplo: se ele quer dizer “Que dias quentes!”, ele diz “Ques dia quente”, e se dá por satisfeito, achando-se compreendido. É o tal problema da linguística: comunicou (certo ou errado) e foi compreendido? É válido. Vejam outros exemplos:
 
- quis minina legal, meu” = que meninas legais!
 
- quis aula chata” = que aulas chatas!
 
- “quis prova difícil, mano!” = que provas difíceis!
 
Não é uma joia?  
 
Na Praça Barão não se diz “boa tarde!”, assim por inteiro, mas um abreviado “boa!”.
 
Vai-se à padaria e ouve-se do freguês: “Mi dá dois pãozim fresquim... Bem clarim... Aqueles ali, ó!” Convenhamos, talvez fosse exigir demais esperar que o freguês dissesse “Dê-me dois pãezinhos fresquinhos, bem clarinhos; aqueles ali, olhe!”
 
A linguagem afetiva não fica para trás. Tenho uma amiga que se mudou do Sul para cá. Ela anda estranhando muito o fato de ser tratada por “bem” pelas mulheres com quem tem contato. Com efeito, o leitor já prestou atenção em como se emprega a palavra “bem” nas conversas entre mulheres em Franca?
 
- Bem, me faz um favor!
 
- Muito obrigada, bem!
 
- Que linda cor de esmalte, bem!
 
É claro, falta pesquisar um pouco mais o item sinceridade nesse caso. Pode ser ironia.
 
Pensamos que só as mulheres francanas é que se tratam assim. Curiosamente tenho notado     que também entre os homens há um diferencial no tratamento afetivo, sem que com isso seja maculado o machismo francano. Tem se tornado comum os homens dizerem, naturalmente, entre si, “meu querido”, no escritório, no serviço, telefone:
 
- Você não encontra outro carro igual por este preço, meu querido!
 
Estranho, não?
 
Os barbarismos em Franca estão estampados nos vidros traseiros dos carros. Quem já não leu frases como:
 
- “É veio, mais tá pago!” Ou seja, sou pobre, mas tenho o nome “limpim”.
 
- “Nóis tromba, mais nóis num breca!”, gente de personalidade, não é mesmo?
 
Verdadeiras preciosidades. E assim vai.
 
Nem os outdoors escapam dos barbarismos específicos da cidade. Certo candidato, nas últimas eleições, querendo avisar à população que estava muito atento às artimanhas da política e dos cata-votos que sempre chovem em nossa cidade nessa época, mandou escrever em tipos muito grandes e vermelhos: “Estou ALERTO!”, querendo dizer que se encontrava alerta. Sabemos que esta palavra é invariável: estou alerta, estamos alerta, o rapaz estava alerta, etc.
 
Talvez não haja uma solução de curto ou médio prazo. Por isso, fico com a proposta de Monteiro Lobato: talvez devêssemos escrever um dicionário de francanês. Qual a utilidade? Oh, muita! A de, pelo menos, passar a entender a língua de quase duzentas mil pessoas, num contingente de trezentos e cinquenta mil francanos.
 
Everton de Paula, acadêmico e editor 
email  - evertondepaula33@yahoo.com.br
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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