Lei do menor esforço

Não há como negar que mudanças profundas aconteceram em escala mundial na segunda metade do século passado: o avanço

10/08/2014 | Tempo de leitura: 4 min

“A consciência da complexidade nos faz compreender que não poderemos escapar jamais da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total: a totalidade é a não verdade”.

Edgar Morin, sociólogo francês
 
 
Não há como negar que mudanças profundas aconteceram em escala mundial na segunda metade do século passado: o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica entre capitalismo e comunismo nas relações internacionais provavelmente estão na crista dessas mudanças. Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com exatos 93 anos, percebeu que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. Critica a especialização, a simplificação e fragmentação de saberes e propõe o conceito de complexidade.
 
No melhor estilo brasileiro, “se é possível complicar, para que simplificar?” É isto mesmo. Para o pensador, autor de O Método, os saberes tradicionais foram submetidos a um processo reducionista que acarretou a perda das noções de multiplicidade e diversidade. A simplificação, de acordo com Morin, está a serviço de uma falsa racionalidade, que passa por cima da desordem e das contradições existentes em todos os fenômenos e nas relações entre eles.
 
Monteiro Lobato, ao criar o personagem caipira Jeca Tatu, encena uma visita ao casebre do matuto. Impressionado com a simplicidade dos móveis e dos cômodos, pergunta, diante de uma banqueta de três pernas: “Jeca, por que três pernas?” Ao que Jeca responde: “Ora, se com três para em pé, pra que a quarta?”
 
No Brasil, a gênese e o desenvolvimento da lei do menor esforço são encontrados em leituras de fácil acesso e entendimento, a partir de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Usos e costumes que, desde a colonização, foram se simplificando, de móveis a utensílios de cozinha, de trajes a frases, de conceitos (o que é visceral) à transmissão de conhecimentos. Hoje, temos uma infinidade de exemplos a que muitos chamam de evolução, na contramão da teoria das complexidades desenvolvida por Morin. 
 
Se pudermos formar um professor em dois ou três anos em nível superior, para que um curso de quatro anos de Letras? Se pudermos condensar todos os conceitos teóricos numa apostila de 50 páginas, para que inseri-los num livro de 500 páginas? Se o pronome de tratamento vossa mercê é muito longo, vamos logo tratando de reduzi-lo ao longo do tempo: vosmecê > você > ocê > cê... Já não ouvimos frases reduzidas ao máximo como “Cê tá bão?” em lugar de “Você está bom?” Os exemplos na língua pululam: moto (motocicleta), pornô (pornografia), cine (cinematografia), extra (extraordinário), bom-dia (dia!)... A gíria é um caso a parte, mas exemplo riquíssimo de redução de raciocínio. Vejam: temos os adjetivos “bom”, “bonito”, “agradável”, “extraordinário”, “excelente”, “formidável”, “aprovado”, “elegante”, etc. Sucede que para cada um deles, nossa mente decodifica até chegar a um conceito diferente. Pela lei do menor esforço, reduzimos todo nosso pensamento e todas as diferentes articulações numa só expressão: “bacana!” ou, 
como muitos já dizem: “só!” Não é também uma redução drástica de pensamento?
 
Assim vamos reduzindo, simplificando, facilitando tudo o que antes era um pouco mais complexo e exigia mais de nossa atividade mental. Os Sertões de Euclides da Cunha, que nos força um exercício mental mais puxado, consultas ao dicionário, passam a ser obra “proibitiva”, antes pela linguagem “difícil” que pela denúncia de um erro nacional. Francisco Marins, escritor do interior de São Paulo, com a melhor boa vontade, simplificou a obra com a intenção de torná-la acessível aos jovens estudantes - em lugar do volumoso Os Sertões surge o Aldeia Sagrada, de poucas páginas e vocabulário raso.
 
Enfim, para que escrever um trabalho se posso copiar da internet? Para que estudar se eu posso colar? Para que fazer bem feito se quero que apenas funcione? Para que protestar contra a corrupção se eu posso ficar quieto? Para que escrever esta Gazetilha se poucos vão lê-la ou achá-la “difícil” de entender? Parece que a própria natureza conspira: você já viu correnteza subir morro? Já viu predador preferir uma presa equivalente ou superior à sua força/agilidade? E na política: já viu político deixar de ser deputado para advogar ou montar um consultório médico?
 
Reconheçamos: a lei do menor esforço tem sua utilidade na tecnologia, mas nunca nas ciências humanas. Ela é, com certeza, a banalização de nossa cultura, a simplificação da harmonia clássica musical até chegar aos dois ou três acordes básicos de um pagode ou música sertaneja. Sem contar com seu maior e mais devastador malefício: a simplificação das mentalidades e a quase anulação por completo da consciência crítica. E aí, não há poder que faça esclarecer o povo de uma nação sobre o quanto é salutar a alternância de poder político, principalmente depois de um só partido ter-se mantido no poder por duas vigências. 
 
Everton de Paula, acadêmico e editor 
email - evertondepaula33@yahoo.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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