COM AS PRÓPRIAS MÃOS


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aAngélica Santa Cruz Agência Estado Maria do Carmo Ghislotti tem 31 anos, é chamada de Fia pelos amigos, alucinada por cigarros de palha e dona de um par de olhos verdes que na semana passada inspirou em muitos que a viram o comentário: “Seria linda, se não fosse maltratada.” Tem cinco filhos. O quarto nasceu em agosto de 2002 com 3 quilos e 800 gramas e foi batizado com um daqueles nomes estrangeiros escritos pela fonética portuguesa - uma escolha do pai. Hoje tem 3 anos, adora doces e delira quando alguém o coloca no lombo de um cavalo. Às vezes faz a parentada cair na gargalhada com suas frases articuladas. Na manhã de terça-feira, soltou uma de suas sentenças: “O Robson fez besteira comigo, mãe” Uma hora depois, Maria do Carmo matou o autor da besteira. “Não saía da minha cabeça a imagem do meu filho chorando”, disse à reportagem, em resposta a perguntas enviadas por escrito. Fia foi personagem do crime mais comentado da semana: golpeou a jugular e matou o rapaz que fez com seu filho de 3 anos o que tecnicamente se chama de atentado violento ao pudor. Por causa dos ferimentos, o menino terá de passar por uma operação reparadora. Ao examinar o garoto, os peritos constataram que ele já tinha lesões anteriores, que podem ser de eventuais abusos. Pelo que dizem seus pais, o garoto nunca tinha dado sinais de ter sofrido esse tipo de violência. De acordo com eles, o assunto entrou na família pela primeira vez naquela terça-feira - e no espaço de duas horas. No dia do crime, Maria do Carmo acordou cedo e foi para o quintal de sua casa - em Santa Eudóxia, um distrito de São Carlos, a 240 km de São Paulo. Fez 40 tranças nos cabelos da filha de 5 anos e preparou a roupa dos outros meninos. Queria tudo em ordem para recepcionar um de seus irmãos, que passou por um tratamento para alcoolismo em Santa Catarina. Viu quando o filho de 3 anos saiu de perto para seguir o pai, Sebastião Tertuliano - um sujeito boa-praça de 35 anos, que trabalha cortando madeira para fazer carvão, diz com orgulho que tem dois caminhões, duas vacas e quatro bezerros e, como notou seu advogado, “é a cara do ator Cuba Jr”. Ocupado no quintal, Sebastião deu por falta do filho - mas achou que ele tinha ido com a irmã mais velha pegar doces. Minutos depois, ouviu um grito no bambuzal que separa seu quintal da rua Foi até lá e avistou de longe o vizinho Robson Xavier Francelino de Andrade - um rapaz de 15 anos, com algumas passagens pela polícia - e que aos 7 anos testemunhou quando a irmã mais nova foi morta a pauladas pela mãe, em um canavial, porque chorava demais. Sebastião chegou mais perto do bambuzal e só então pôde ver a cena: Robson segurava com força o menino - e já havia consumado seu crime. “Eu gritei: o que você tá fazendo com meu moleque? Ele saiu correndo. Você não sabe o que é ver uma coisa dessas..”, conta. Com o filho nos braços, Sebastião correu para avisar a mulher. Maria do Carmo viu que o filho sangrava, perguntou o que tinha acontecido - e ouviu a frase que a descontrolou. Meia hora depois, estavam todos em uma viatura da Polícia Militar, a caminho da Delegacia de Defesa da Mulher, no centro de São Carlos. Sebastião, Maria do Carmo e o garoto foram sentados na frente. Robson atrás, na gaiola. O pai do rapaz, Aparecido de Andrade, também entrou no carro. Quando chegou à delegacia, o grupo se separou. Sebastião saiu para levar o filho para fazer exame de corpo de delito. A mulher ficou sentada em uma sala de espera ocupada por dois bancos de couro preto e duas cadeiras. Robson sentou a dois palmos de distância dela. Ela puxou uma faca de cozinha que estava escondida em sua cintura e fez um único corte na jugular do rapaz. O sangue jorrou até o teto. Ele morreu a caminho do hospital. Quando Sebastião e o garoto voltaram, encontraram Maria do Carmo algemada. O menino começou a chorar outra vez e perguntou: “Amarraram você, mãe?” JUSTIÇA Em São Carlos não há detenção feminina - e Maria do Carmo foi levada para a delegacia da cidade vizinha, Ribeirão Bonito. Está em uma cela com outras quatro presas, chora pouco, fuma muito e faz um pano de crochê vermelho. Para alguns, virou “justiceira”. A caminho do trabalho, os carcereiros são parados por pessoas que pedem que ela seja solta. Ouvintes ligam para rádios locais para defendê-la. Sebastião diz: “Homem veste saia. Ela é que teve coragem de fazer o que eu o pai, devia ter feito.” Além de virar tema de conversas pelo país afora, Maria do Carmo se transformou em abacaxi jurídico. À luz da lei, é uma homicida. Mas, diante dos casos individuais que relativizam as leis, há a dúvida se é o caso de manter presa uma ré primária, que matou o sujeito que molestou seu filho e tem outras crianças esperando-a em casa - a menor, uma menina de 1 ano e 3 meses ainda mama no peito. O juiz da 2ª Vara Criminal e da Infância e Juventude, João Batista Galhardo Junior, deve ouvi-la nos próximos dias - e pode rever o pedido de liberdade que negou na semana passada e deixá-la aguardar julgamento fora das grades. “Ela cometeu o crime por violenta emoção. Pela experiência de casos assim, é provável que o juiz reveja o pedido de liberdade”, argumenta seu advogado, Helder Clay Biz. Na quinta-feira, quando recebeu a primeira visita de Sebastião na cadeia, Maria do Carmo falou sobre o momento em que resolveu responder a um crime cometendo outro, sob efeito daquela frase. “O rapaz ficou olhando pra minha cara, dando risada, me provocando. Disse que ia sair logo porque era ‘de menor’ e o juiz ia soltar. Eu tentei não olhar pra ele.” HISTÓRIA Maria do Carmo nasceu em Santa Eudóxia e perdeu a mãe ainda criança, assassinada pelo namorado. É descrita por parentes e amigos como uma mulher discreta, que não gosta de sair de casa - e procura manter marido e filhos na linha. “Essa mulher minha é que me ajeitou na vida. Antes eu vivia pra lá e pra cá. A maior alegria da minha vida foi quando nasceram meus filhos com ela”, diz Sebastião - que a conhece desde criança. Na cadeia, ela repetiu ao marido o que disse à polícia: “Matei para ele nunca mais fazer isso com nenhuma criança.”

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