Os sinos agora bimbalham na cabeça da gente. A ressaca do pós-Natal dá a este fim de semana um gosto de Quarta-Feira de Cinzas. Um vazio, uma angústia, um desejo de fugir para longe porque o Natal se foi.
Agora, só no próximo ano. Ingressamos no "tempo comum", como denomina a Igreja Católica, o período entre o Natal e a Páscoa. No Natal celebramos o mistério da Encarnação e na Páscoa o mistério da Redenção, ensinava minha avó. Ela dizia que na Ilha de Santa Maria, no Arquipélago dos Açores, de onde tinha imigrado para o Brasil no início do século passado, havia o costume de amarrar nos galhos do pinheiro em frente de casa, os nomes de todas as pessoas importantes na sua vida. Essa estranha árvore de Natal, sem mais adornos que os papelitos dependurados, incluía também o nome dos desafetos.
Tem sua razão de ser. Os inimigos ou aqueles que nos causam algum tipo de sofrimento também são importantes nas nossas vidas. A dor retempera. Suas causas, sem que a gente perceba, provocam no coração e na mente impulsos que nos levam a mudar de atitudes e procurar novos caminhos. "Pé na bunda tem sua utilidade, porque empurra a gente pra frente" - dizia-se.
Quem sabe é o empurrãozinho que faltava para nos tirar do marasmo e nos colocar em trilhos mais produtivos. Ou no mínimo mais gratificantes.
Felizes os antigos que depois do Natal ainda continuavam comemorando até o Dia de Reis. Os Reis Magos somente conseguiram chegar à choupana onde Jesus nasceu 12 dias após o Natal. Assim, a festa prosseguia até 6 de janeiro. Depois é que começavam as brigas para pagar as contas da farra prolongada.
Hoje, na sociedade de consumo em que vivemos, basta as antevésperas do Natal para nos pôr em xeque assim que comecem a aparecer os avisos de vencimentos do IPVA, do IPTU, das matriculas escolares.
Parece que em vez do Papai Noel nos mandaram o Papai Noé para nos ensinar a estratégia da Arca - como sobreviver ao dilúvio. Vi operários da Prefeitura trabalhando para tapar os buracos abertos pelas enxurradas. Percebo que os comandos se tornam mais ágeis e massa asfáltica existe à vontade. Em matéria de zeladoria é difícil reclamar da prefeita Suéllen. Meu compadre costuma dizer que "em casa de Noé tempestade é chuvisco".
Li um estudo sobre o declínio da mortalidade um pouco antes de feriados importantes como o Natal. Os picos nos índices de mortes acontecem um pouco depois das grandes datas. Pesquisadores de uma universidade norte-americana examinaram 1 milhão e 200 mil prontuários de pacientes terminais e descobriram que os doentes com câncer, geralmente sabem que a morte será próxima e podem ser capazes de afirmar conscientemente sua vontade de viver. Ninguém quer morrer no Natal ou no dia do aniversário. Pelo menos 25% dos doentes terminais conseguem resistir. Natal é vida.
O poeta Manuel Bandeira, tuberculoso, com pneumotórax hipertensivo, ainda reuniu forças para nos brindar com uma obra derradeira: "Assim eu queria o meu último poema/ Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais/ que fosse ardente como um soluço sem lágrimas/ Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume/ A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos/ A paixão dos suicidas que se matam sem explicação".
Por essas e outras, o escritor H. Miller chegou a sugerir o "engarrafamento" do espírito de Natal. Poderíamos abrir uma garrafa em casa mês do ano. Drummond, num dos seus poemas, qualifica de genial "o indivíduo que teve a ideia de cortar o tempo em fatias a que se deu o nome de ano." Esse indivíduo deve ter sido Júlio César: "Industrializou a esperança, / fazendo-a funcionar ao limite da exaustão. / Doze meses dão para qualquer ser humano/ se cansar e entregar os pontos. /Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,/ com outro número e outra vontade de acreditar/ que daqui pra diante vai ser diferente." Feliz Ano-Novo.
O autor é jornalista.