OPINIÃO

'Ainda estou aqui' incomoda

Por Zarcillo Barbosa |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista e articulista do JC

Um documento histórico de uma família feliz e bem estruturada, de repente destruída em nome do autoritarismo que teima em voltar neste país. "Ainda estou aqui", filme de Walter Salles, já foi visto por mais de um milhão de pagantes, recebeu o prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cinema de Veneza e retrata a dor de Eunice, que teve o marido Rubens Paiva preso pela ditadura, no início dos anos 1970.

O desaparecimento é o pior dos lutos. Significa a morte de quem se foi e a dor eterna dos que ficam. Os gregos consideravam castigo dos deuses não poder dar sepultamento ao ente querido dentro dos ritos sagrados. Sófocles (442 a. C) conta a tragédia vivida por Antígona, proibida por Creonte de enterrar o irmão.

Fernanda Torres e Fernanda Montenegro têm atuações impecáveis e emocionantes, transmitindo a dor de uma mulher e de uma nação. Com Eunice choraram Marias e Clarices. O filme de Walter Salles, nada tem de revanchista e muito menos prega o ódio aos repressores. A obra, baseada no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, foca o amor no seio de uma filha como tantas outras. Parece dizer, "o que foi feito, não tem volta". Só precisamos de um Brasil melhor, mais justo. Ditadura nunca mais.

No início as imagens são atabalhoadas, como se tomadas pela câmera amadora de uma das meninas. A família curtia as cenas de recreação na praia, depois exibidas nas reuniões em casa, sempre cheia de amigos. O cachorrinho encontrado perdido na areia, é acolhido pelos Paiva e vira o xodó das crianças. Depois da prisão do marido, Eunice e a filha de 15 anos também são presas.

As cores de Salles tornam-se sombrias, num chiaroscuro renascentista, como saídos da paleta inventada por Caravaggio e usada por Rembrandt. Esse tenebrismo dá o tom realista e o forte efeito dramático. Para piorar a tragédia, o cachorrinho morre atropelado. Indignada, Eunice expulsa os agentes em vigia permanente diante da residência.

A resiliência de uma mulher que nunca desistiu de cobrar o paradeiro do marido, de criar e educar os filhos, permite ao diretor utilizar cores mais vivas no novo cotidiano. A família busca forças nas pequenas lembranças, como a do dente de leite da caçula guardado numa caixa de fósforos. O processo analítico e psicológico de se conseguir passar pelo que Eunice viveu é forte demais. Os crimes da ditadura são de um impacto permanente. E ainda se volta a flertar com isso.

No golpe de 1964, ninguém foi morto. O presidente deposto João Goulart, foi viver no exílio. Os excessos ocorreram na luta armada, pelos subalternos. Agora, conhecemos estarrecidos os lances da tentativa golpista de 2022, ainda mais violentos do que a de 1964.

São sete generais e oito coronéis envolvidos numa trama para matar o presidente eleito Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e ainda envenenar Alexandre Moraes, o então presidente do TSE. A eleição presidencial, sem efeito, abriria o caminho para Jair Bolsonaro continuar no poder mesmo após derrotado. O exílio político seria no cemitério.

No fim da vida, a personagem vivida pelas Fernandas assiste pela televisão, enfim, o reconhecimento pelas autoridades de que o marido fora morto no quartel do tristemente conhecido Doi-Codi. Em janeiro de 1971, relatou uma testemunha ocular, agentes da repressão mataram o engenheiro Rubens Paiva durante sessões de tortura, jogaram os despojos no mar e criaram uma farsa para acobertar o crime.

Rubens Paiva havia sido deputado federal pelo PTB. Foi cassado no primeiro Ato Institucional. Ajudou vários perseguidos a se refugiarem no Chile. Tinha contatos com militantes da Vanguarda Popular Revolucionária, o que lhe custou a prisão e morte. Os cinco ex-agentes acusados de matar o engenheiro e ocultar o cadáver, ficaram sem punição com a Lei da Anistia.

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