OPINIÃO

O dia da mentira é uma mentira

Por Roberto Magalhães | 02/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais

Um vírus altera a sua estrutura química para fugir do ataque do sistema imunológico. O bicho-pau assume a forma de graveto e, mentindo que é árvore, engana o predador. As formigas que se cuidem: existe aranha que, mimetizando ser formiga, delas fazem boa refeição. O mundo natural é assim: quem não dribla os sistemas de ataque ou de defesa de outros seres vivos não garante sobrevivência. O amanhã pertence a quem sabe mentir. No calendário gregoriano, nada é mais mentiroso do que o primeiro de abril. De verdade, mentimos o ano todo.

Aliás, a mentira nos acompanha desde o berço. Antes mesmo de aprender a falar, o bebê já sabe que o choro mentiroso é ferramenta a seu favor. Afinal, quem não chora não mama. O que dizer, então, do universo adulto? Usando a linguagem camaleônica, o bicho-homem mente porque a selva de pedra não perdoa aos descuidados. É o que diz Eduardo Giannetti: "Todos os animais humanos são, em algum momento, enganadores ativos e vítimas de engano; todos estamos intermitentemente enfrentando ambas situações". Se navegar é preciso, mentir para se defender ou para atacar também o é.

Mentimos para esconder o que nos envergonha, para ocultar nossos conflitos internos, para que ninguém conheça nossos malucos desejos. Mentimos, enfim, porque somos humanos e, sobretudo, para tornar a vida possível. E quando não mentimos, tesouramos a realidade e contamos apenas meia verdade. Outras vezes, exageramos, posto que contar um conto é aumentar um ponto. Somos assim, usamos tinta mais leve ou mais forte, conforme queiramos abrandar ou agravar o fato ocorrido.

Agora, não existe mentira maior do que aquela que contamos para nós mesmos. O incrível é que nela inocentemente acreditamos. Mentimos para nós mesmos o tempo todo sem o percebermos. É o chamado autoengano. O que dizer daquela mãe que vive enaltecendo as virtudes do filho, apesar de todas as evidências em contrário. Aliás, tais evidências negativas ela reconhece, sem dificuldade, no filho da vizinha. Ela não percebe que está mentindo para si mesma. É natural que a mãe lamba a cria.

Não poucas vezes, pensamos que estamos agindo impulsionados por amor ao próximo, quando, em verdade, a energia que nos move é rasteiramente egocêntrica. Os exemplos dados por Giannetti explicitam como estamos sempre puxando a brasa para nossa sardinha: "o meu carro novo é instrumento de trabalho; o do vizinho, fruto da vaidade e da exibição. O turismo que faço é cultural; o do vizinho, crasso e vulgar". E quando fracassamos naquilo que tanto desejávamos, viramos raposa mentirosa dizendo que assim foi melhor porque as uvas estavam verdes.

Não somos quem pensamos ser. Geralmente, somos bem menos. A mentira que nos contamos é uma forma inconsciente de defesa, também de ataque. Melhor desconfiar do que achamos que somos. Criamos as histórias, cujo enredo nos favoreça e a cara que nelas colocamos é sempre a nossa melhor cara mentirosamente filtrada. Não é o que tanto se vê nas redes sociais? Parodiando Descartes, há quem diga que melhor é duvidar do que pensamos: Penso, logo hesito.

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