OPINIÃO

As saúvas do golpismo

Por Luiz Malavolta | 31/03/2024 | Tempo de leitura: 10 min

A madrugada de quarta-feira primeiro de abril de 1964, em Bauru, foi muito bizarra, além de ser o dia consagrado à mentira.

Caminhões do Exército e viaturas da Força Pública tomaram conta de algumas regiões da cidade, fecharam ruas centrais com cavaletes e soldados armados se puseram em vigília.

Ninguém  podia circular sem ser identificado e quem fosse parado precisava informar para onde estava se dirigindo e com quem iria se encontrar.

Algumas pessoas foram detidas e levadas para a chefatura de polícia, no centro da cidade, para identificação e averiguação.

Havia pouca informação, mas forte difusão de pânico na sociedade sobre uma suposta comunizacão do país.

Pregava-se então "a luta do bem" contra um certo "mal" abstrato, que ninguém conseguia explicar direito do que se tratava; exaltava-se a proteção da família e um patriotismo de resultados, tudo em nome de um Deus protetor. Sessenta anos depois, a papagaiada continua a mesma e vimos isso em 2018 e em 2022.

Logo que amanheceu naquele primeiro de abril, diante de notícias da véspera de confrontos de militares com civis em várias partes do país, o pai, que era caminhoneiro, foi até o Posto XV, na quadra 22 da Avenida Rodrigues Alves, onde funcionava uma agência de freteiros de cargas.

Foi lá dizer ao agente de fretes que havia desistido da carga de café que deveria pegar naquele dia e transportar de Garça para o Porto de Santos.

Na volta para casa, estacionou o caminhão Ford 1600 no terreno ao lado, e disse que  era melhor esperar as coisas se acalmarem para voltar a trabalhar.

O avô Luiz, que assistira a primeira grande guerra, a pandemia da gripe espanhola, a crise da Bolsa de 1929, o surgimento do nazismo na Alemanha,  o fascismo na Itália (que custou a vida de um tio anarquista), a ditadura de Vargas, o fiasco da revolução de 1932 e  a segunda guerra mundial, ficara perplexo com a estupidez do eleitor brasileiro por ter acreditado em Jânio Quadros, eleito presidente do Brasil, e  o "salvador da pátria".

 Por isso, diante das notícias de levante militar, no dia da mentira, logo sentenciou: "Mais uma vez os brasileiros vão trocar as moscas, mas a merda continuará sendo a mesma".

Desde cedo, naquele primeiro de abril, toda a família estava sintonizada na rádio PRG8, emissora pioneira na cidade e que não existe mais.

Acompanhavam  atentos as informações sobre a destituição do presidente João Goulart pelas Forças Armadas e o oportunismo do Congresso Nacional em declarar o cargo vago.

Congressistas e militares jogaram  o Brasil numa ditadura de 20 anos, mas muitos de seus apoiadores de primeira hora  foram depois presos, cassados e/ou perseguidos.

Hoje já se sabe que os golpistas militares e civis  estavam a soldo de Washington, que queria uma América Latina toda alinhada aos interesses econômicos e lucros de suas multinacionais e às favas à democracia no continente.

Naquele dia da mentira também não fui à escola. A mãe recebera informações de vizinhos de que as aulas no Colégio Professora Mercedes Paz Bueno estavam suspensas até segunda ordem.

Em 1964, Bauru era uma importante cidade ferroviária e com grande contingente de ferroviários. Bairros como Vila Falcão e Bela Vista eram majoritariamente ocupados por famílias de trabalhadores das companhias Noroeste, Paulista e Sorocabana.

Era uma categoria muito organizada e articulada política e ideologicamente. Por volta das 11h da manhã, um som estridente de dezenas de apitos de locomotivas  passou a ser ouvido na maior parte da cidade por uns vinte minutos ininterruptamente.

Era uma convocação. Os ferroviários decidiram paralisar o trabalho e se concentrar em Triagem, que historicamente era o o local de decisões desses trabalhadores sobre greves e outras pautas.

Naquele dia, um número grande de ferroviários se posicionou contra a deposição do presidente Goulart e manifestou a intenção de resistir ao golpe.

Da rua de casa dava para ver a movimentação em Triagem.  Não demorou para a repressão policial e militar chegar e o grupo acabou disperso com truculência.

Triagem era um grande pátio de manobras de trens. Hoje está hoje abandonado.  Os antigos prédios  dali estão em  ruínas. O local merecia ser restaurado e preservado como importante centro de memória ferroviária  e cenário de muitas lutas históricas em defesa da democracia e da categoria ao longo do século vinte.

Ao mesmo tempo que setores da sociedade, como os ferroviários, se posicionaram contra o golpe e contra a  deposição de João Goulart, na cidade já havia um grupo organizado e articulado de apoiadores dos militares.

Era chefiado pelo  promotor de justiça Silvio Marques Júnior, que fundou e presidia a  "Frente Anticomunista de Bauru" (FAC), organizada meses antes do golpe. Sabe qual era o lema da FAC?  "Deus, Pátria e Família".

Logo após o levante militar, usando credenciais  de promotor, saiu às ruas para caçar comunistas na cidade, visando protagonismo nacional nessa empreitada. Trouxe a Bauru um coronel do Exército para lhe dar respaldo nas ações de perseguições que promoveu na cidade.

Vinte e seis dias antes do golpe, Silvio Marques Júnior deu entrevista ao jornal "Diário de Bauru", como presidente da FAC. Ao jornal disse que o Brasil, sob João Goulart, estava se tornando um país comunista, mas sem apresentar dados confiáveis do que estava falando. Revelou  que seu objetivo era formar um exército nacional de anticomunistas para enfrentar uma suposta esquerda financiada com "ouro de Moscou".

"Dentro de 60 dias, se recebermos a ajuda necessária, 50 mil homens estarão aptos à efetiva defesa do regime, sendo de ressaltar o apoio que a FAC tem recebido por parte do clero, em todas as cidades por onde tenho passado, nesta propaganda", declarou o promotor ao jornal.

Silvio Marques não foi o único na cidade a fazer caça às bruxas, mas foi o mais proeminente e deixou um legado triste na história local.

O governo militar se dizia revolucionário, mas não melhorou a vida de ninguém, só dos seus áulicos. O país viveu 20 anos trágicos e  de mentiras, teve  recessão, desemprego, corrupção, tortura e assassinatos. O "milagre econômico" foi uma farsa bancada com empréstimos do FMI. Foi na ditadura que se começou a destruir a Amazônia, derrubando as matas e abrindo  estradas, autorizando a entrada do garimpo na região, com a  contaminação de rios e solos. Índios foram massacrados. Só  não se noticiava isso tudo na época porque havia censura aos meios de comunicação e jornalistas eram presos, torturados e alguns assassinados nos porões do DOI-Codi, do Exército (coronel Ustra) e do DEOPS, do delegado Sergio Fleury.

Em 1968, o pai continuava trabalhando como caminhoneiro. Naquele ano, conseguiu um contrato para transportar botijões de gás de Osasco para Bauru. Eram três viagens por semana.

Minhas férias escolares começavam sempre no início de dezembro. Como tinha sido aprovado e passado de ano na escola, como presente fui chamado para acompanhá-lo numa dessas viagens. E havia uma novidade nesse trajeto. Um mês antes, em  novembro, havia sido inaugurada a Rodovia Castello Branco, a primeira autopista com várias faixas, para trafegar até a velocidade de 120 km.

Essa viagem foi na sexta-feira 13/12 à tarde. O caminhão Mercedes-Benz 1113 seria carregado sábado cedo e voltaria para Bauru, porque a distribuidora estava fazendo estoques para atender a demanda de fim de ano.

Quando nos aproximamos de Osasco, havia um bloqueio na Castello. Eram militares do Quartel de Quitaúna, que fica na cidade, de onde desertaria tendes depois  o capitão Carlos Lamarca para aderir à guerrilha.

Armados, os militares paravam todos os veículos para inspeção. A gente não sabia o que estava acontecendo. Revistaram o caminhao, fomos também revistados, mexeram nos botijões. Depois de algum tempo, nos liberaram, com a ordem de não ficarmos à noite na rua.

A razão daquilo seria conhecida às  21h daquele dia: o ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva entrou em rede nacional de rádio e TV e anunciou o AI-5 (Ato Institucional), que suspendeu direitos e garantias individuais, proibiu concessão de habeas corpus para crimes políticos, institucionalizou a censura prévia aos meios de comunicão, autorizou prisões sem motivações, amordaçou o Poder Judiciário, fechou o Congresso Nacional, cassou ministros do STF, jogou o país num limbo.

O pai não costumava ler jornais, mas todas as semanas comprava revistas. A capa da revista Veja logo após o AI-5 era um cartaz sombrio. Trazia uma foto em preto e branco do general Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar, sentado numa das poltronas do Congresso Nacional que ele fechara e estava vazio. Não havia título ou texto na capa. A imagem do Costa e Silva por si só dizia tudo e já era intimidadora.

Anos depois passei a achar que Costa e Silva era muito parecido com o general Augusto Pinochet, que virou ditador do Chile. Quase todos os ditadores parecem ter a mesma cara.

Em 1972, o Jornal da Cidade ganhou sede nova, na rua Xingu, inaugurou novo parque gráfico e impressão em offset. Em setembro, fui contratado para a redação. O jornalista Nilson Costa era diretor do JC e seu fundador. Na sua sala, colocou muitas fotos de flagrantes jornalísticos importantes publicados pelo jornal desde sua criação em 1968. Mas haviam umas seis o sete fotos  tamanho 18 X 24 em preto e branco que ele guardava num armário da estante, dentro de uma caixa de papel fotográfico Kodak.

Nilson Costa sempre foi discreto, de fala pausada e em tom cordial. Um dia, me chamou na sala para me mostrar essas fotografias e contar sua história.

As fotos eram o registro histórico  de um encontro que tivera com Fidel Castro e Che Guevara em Cuba. A  viagem a Cuba foi em 1961 e no golpe de 1964 isso lhe custara caro. Viajou como integrante de uma delegação parlamentar, já que exercia o mandato de deputado estadual. Cuba convidara o grupo para ver o país após a recente revolução que derrubara o ditador Fulgencio Batista.

Por causa dessa excursão oficial, ele teve os direitos políticos cassados por ato institucional, perdeu o emprego na rede Ferroviária Federal e sofreu perseguição de gente da laia de Silvio Marques. Só na década de 1980 recebeu anistia política e restabeleceu os direitos suprimidos.

Não foi o único na cidade a ser perseguido. Muitos sofreram o mesmo. O ex-prefeito Édson Bastos Gasparini foi um deles; me contou quando ainda era vereador a perseguição sofrida do presidente da FAC logo após o golpe. Gasparini nunca escondeu seu vínculo ideológico comunista e se manteve fiel a sua crença até morrer. Não foi cassado e foi eleito várias vezes vereador pelo MDB.

Na rua onde fui criado, éramos vizinhos da família Petit. Lembro de dona Julieta, mãe dos irmãos massacrados no Araguaia pelas tropas do general Hugo Abreu, por integrarem a guerrilha. Lembro vagamente de Maria Lúcia. Dona Julieta dizia ter esperança de localizar e sepultar os filhos antes de morrer, pois os três nunca haviam sido encontrados.

Mas um  dia chegou a notícia de que a ossada de Maria Lúcia fora identificada. Em junho de 1996, dona Julieta pôde enterrar a filha no cemitério jardim do Ypê, em Bauru. Vim de São Paulo para Bauru para a cerimônia e para fazer reportagem para a Folha, onde trabalhava à época.

Não consigo compreender a decisão de o presidente Lula determinar que não haja agenda oficial para repudiar o golpe militar de 1964, no seu sexagésimo aniversário. Quase tivemos um novo golpe em 8 de janeiro do ano passado.

Lula foi vítima da ditadura. Foi preso e cassado do seu mandato no sindicato dos metalúrgicos do ABC. O mínimo que ele deveria fazer seria convocar um ato ecumênico e de repúdio à ditadura e aos golpistas de 1964 e 2023. Preferiu contemporizar com quem o desrespeitou e desrespeitou a nação.

O episódio de 8/01/2023 deixou evidente que o germe do golpismo no Brasil ainda está entranhado em setores reacionários e dentro das forças armadas. O Brasil não fez a assepsia necessária que a Argentina promoveu na década de 1980 e puniu com longas penas de prisões generais e outros militares da ditadura daquele país.

Sempre é conveniente lembrar a máxima do naturalista francês Auguste de Saint Hilaire, que se encaixa bem nesse impasse que estamos vivendo: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”.

Em 8 de janeiro, por sorte, as saúvas perderam, mas o ninho delas ainda está vivo por nossas terras.

Luiz Malavolta é jornalista em São Paulo

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1 COMENTÁRIOS

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  • Roberto Campos
    01/04/2024
    Excelente artigo. Recorte lúcido de tempos sombrios que por muito pouco não tivemos a infelicidade de viver novamente. As atrocidades da ditadura militar devem sempre serem lembradas.