OPINIÃO

O bacalhau da Semana Santa

Por Zarcillo Barbosa | 30/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista e articulista do JC

Na Sexta-Feira da Paixão meu destino é a cozinha. Até que me dou bem com a minha Bacalhoada à Portuguesa, com batatas ao murro, pois, pois.

Antes de começar a cozinhar tenho o cuidado de lavar as mãos, como Herodes (e não venha me dizer que Herodes nunca lavou as mãos).

Herodes Antipas, tetrarca da Galileia era inimigo de Pilatos, como conta o Evangelho de Lucas (23-24). Para complicar, o adversário encaminhou-lhe Jesus com uma túnica vermelha, a veste dos reis. O mandatário romano vivia cheio de remorsos desde o dia em que mandou decapitar João Batista. O profeta o condenara por ter se casado com a cunhada (onde se viu transar com a mulher do irmão). Presenteou a cabeça do homem que batizou Jesus à Salomé, numa bandeja.

Herodes devolveu Jesus ao remetente. Que Pilatos decidisse a sua sorte. O governador romano entregou o Nazareno ao povo. A turba preferiu que Barrabás fosse solto e crucificou Jesus. Aí, sim. Pilatos lavou as mãos como a se eximir de responsabilidade.

"Fazer como Pilatos", significa há muitos séculos, não ter nada com o peixe, ou com o bacalhau propriamente dito. Parece até coisa do Bolsonaro. Hoje, "ir de Herodes a Pilatos" é ficar indeciso frente a um problema e empurrá-lo a um e outro como se não fosse o responsável original. "Quem pariu Mateus que o embale", costuma responder o circunstante que não quer aborrecimentos com problemas por ele não criados.

Acontece que Mateus, apóstolo e evangelista, era arrecadador de impostos, antes de ser chamado por Jesus. Quando aparecia em alguma cidade da Galileia os comerciantes sabiam que vinha chumbo grosso. Os inadimplentes eram obrigados a cortejar o fiscal antes mesmo que apeasse do jumento. Por causa daqueles que se furtavam a dar a César o que é de César é que a diligência se realizava. Os devedores de impostos que fossem se entender com o homem.

Os canais de tevê por assinatura, dedicam-se a exibir documentários sobre passagens da Bíblia e assuntos derivados. Um deles falava sobre o Evangelho de Judas, registrado em escrita copta em antiquíssimos pergaminhos. Depois de quase dois mil anos sendo malhado, Judas corre o risco de ser reabilitado. Acusado de ter inventado a "delação premiada", os documentos recém-descobertos provam que ele nada tinha de traidor.

Depois de me envolver com o bacalhau, cansado de tevê, passei o dia santo ouvindo músicas do meu tempo no Spotfy. Confesso que as letras, apesar de cafonas, acendem o abajur lilás dos meus sentimentos. Voltar a sentir a boca molhada, para sempre marcada pelos beijos teus evocam saudades da boneca cobiçada. Quando Dick Farney lançou "Alguém como tu", eu era garoto e já trabalhava como operador de som na rádio da minha terra.

Meu amigo Bertonha, italianinho englostorado do bairro, havia levado o fora da Rose, filha do português da padaria (seria um pleonasmo?) Expert nos hits do momento tracei uma estratégia para tirar o amigo da deprê. Em vez de Ovo de Páscoa, topou comprar o 78 rpm do Dick Farney, mandou embrulhar para presente e foi entregar a "bolacha" no portão da casa da razão dos seus ais. Afinal, "alguém como tu, mais ninguém". O samba-canção haveria de mexer com o emocional da garota, a ponto de reacender a velha chama.

O disco mexeu mesmo com a Rose. No que abriu o envelope, lançou o disco à distância, nos paralelepípedos da rua. Bateu o portão e não deu nem tchau. Numa noite, depois da aula, aconselhei o meu amigo a juntar seu amor, seus trapinhos e queimar tudo. Que ela saísse do seu caminho. Vingança.

Haveria de rolar como as pedras que rolam na estrada. Bertonha até voltou a sorrir quando lhe contei que o apelido da Rose, no bairro, passou a ser Discóbula. Lembra-se daquela estátua do atleta grego nu, no ato de arremessar o disco olímpico? Pois é... Só não tive coragem de dizer que, lá na vila, o Bertonha passou a ser chamado de ÓVI - Objeto Voador Identificado.

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