OPINIÃO

Morrer para nascer

Por Claudia Zogheib | 27/03/2024 | Tempo de leitura: 2 min

A autora é psicóloga clínica pela USC, psicanalista especialista pela USP. @zogheibclaudia; @ auguri_humanamente; @cinemaeartenodivã

Quando Freud escreveu o texto "Sobre a transitoriedade" 1916, o mundo estava em guerra. Trata-se de um texto curto, profundo e poético que nasceu de uma conversa durante um passeio pelos campos de flores com o amigo e poeta Hilke onde ele estabelecia uma relação da guerra e destruição com o valor daquilo que é transitório. Ao mesmo tempo que estavam diante de uma natureza límpida, o olhar do poeta não conseguia apreciar tudo aquilo que em outra circunstância teria admirado, parecendo-lhe despojado de valor por estar fadado à transitoriedade, destruído pela guerra.

Freud rebate seu amigo dizendo que o valor da transitoriedade é da escassez do tempo, e justamente por isto eleva seu valor, e acrescenta dizendo que não devemos diminuir o valor das coisas diante de uma morte iminente, mas sendo capaz de pensa-la a partir de sua ausência, sendo capaz de estabelecer um novo símbolo que nos reestabeleça a ponto de podermos experienciar coisas novas, vividas não somente a partir de uma renúncia, mas de uma elaboração que não é perdida pela fragilidade, mas pela constatação estrutural que nos faz capaz de considerar sua importância.

O valor de toda a beleza e perfeição é determinado pelo significado existente em nossa vida emocional, não precisando sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta por exercer sua presença também quando ausente.

Fiquei pensando na morte e ressurreição de Cristo celebrada nesta semana, e do valor atribuído que está implícito nesta celebração que possibilita uma reflexão para se entender a morte, as podas, as perdas, o tempo, o sofrimento e o ressurgir depois de tudo cumprido e experenciado. Parece significativo compreendermos o valor das coisas enquanto ausentes e transitórias, elevando seu valor à medida que entendemos que nada e tudo passa. Nada, porque existe um valor que permanece dentro de nós que foi estabelecido por seu significado, e tudo porque nada fica para sempre permanecendo apenas a síntese do essencial.

Freud dizia o quanto nós humanos necessitamos que as coisas sejam transitórias, sendo a fruição da beleza temporária pensada a partir de sua ausência, uma questão fundamental que ele aprofundou em seu texto "Luto e Melancolia" publicado em 1917. O luto bem elaborado nos faz capaz de reconstruir diante da constatação que nada se perdeu com a descoberta de sua fragilidade e morte, mas sendo reconstruído em base duradoura e firme porque se constatou em sua ausência o valor daquilo que ficou em nós.

Sempre vamos experimentando um pouco de morte durante a vida, sejam nas coisas que duram e naquelas transitórias, nos fazendo entender que necessitamos morrer no sentido de elaboração das coisas, para nascer com elas dentro de nós, digeridas quando entendemos e introjetamos o seu significado e valor.

Porque no final de tudo, existimos à medida que nos abandonamos no espaço entre as coisas onde se permite tudo acontecer.

Música, "Nascer, Viver, Morrer" com Tim Bernardes.

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