JULGAMENTO

Caso de Bauru derruba norma do Código Civil sobre regime de bens

Restrição sobre regime obrigatório de separação de bens pode ser afastada se houver vontade das partes, diz Supremo

Por André Fleury Moraes / com Folhapress | 01/02/2024 | Tempo de leitura: 4 min
da Redação

Tisa Moraes

Ageu Libonati Júnior e Alex Libonati (à direita) são os autores da ação
Ageu Libonati Júnior e Alex Libonati (à direita) são os autores da ação

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade e derrubou nesta quinta-feira (1) a previsão do Código Civil brasileiro segundo a qual é obrigatório o regime de separação de bens no casamento a pessoas acima de 70 anos.

Os ministros entenderam que o dispositivo pode ser afastado se houver expressa manifestação de vontade das partes por escritura pública. A tese tem repercussão geral - isto é, serve de parâmetro para o julgamento de casos semelhantes em todo o País.

A decisão vem no âmbito de uma ação ajuizada pelos advogados Alex Libonati e Ageu Libonati Júnior, de Bauru, e envolve um homem e uma mulher que mantiveram união estável no município durante 12 anos, de 2002 a 2014, quando ele morreu. A cônjuge, então, ajuizou ação requerendo direito à herança.

A Justiça de Bauru reconheceu a companheira como herdeira e apontou que a previsão do Código Civil sobre a restrição à união de bens fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

O entendimento acabou foi revertido em segundo grau, depois que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acatou um recurso dos filhos do finado e aplicou o regime de separação de bens, já que ele tinha mais de 70 anos quando a relação começou.

Para os desembargadores, o artigo 1.641 do Código Civil tem por objetivo proteger a pessoa idosa e seus herdeiros de casamentos promovidos por interesses econômico-patrimoniais. Um recurso interposto pelos advogados de Bauru, no entanto, levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF).

"A definição do regime de bens produz impactos diretos na organização da vida da sociedade brasileira. Sob o aspecto jurídico, tem relação com a interpretação e o alcance de normas constitucionais que asseguram especial proteção a pessoas idosas. Economicamente, a tese a ser fixada afetará diretamente os regimes patrimonial e sucessório de maiores de 70 anos", apontou o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, ao decidir pela repercussão geral do tema.

O julgamento no Supremo começou no ano passado e terminou ontem. A tese de que o dispositivo do Código Civil pode ser afastada quando houver expressa concordância das partes e registro em escritura pública foi acatada por unanimidade entre os ministros.

Barroso disse que a norma presumia que maiores de 70 anos são incapazes de tomar decisões. Também observou que a população brasileira tem envelhecido progressivamente, o que tem gerado até crise na previdência.

O ministro defendeu que as pessoas idosas, enquanto conservarem sua capacidade mental, têm o direito de fazer escolhas acerca da sua vida e a disposição de seus bens.

Ele argumentou que a regra violava o princípio da dignidade da pessoa humana e o da igualdade, como no ponto da autonomia individual. Isto porque, segundo o ministro, ela impede que pessoas capazes de praticar atos da vida civil façam escolhas existenciais. Além de tratar idosos "como instrumentos para a satisfação do interesse patrimonial de seus herdeiros", afirmou.

"O princípio da igualdade, por sua vez, é violado por utilizar a idade como elemento de desequiparação entre as pessoas, o que é vedado pela Constituição, salvo se demonstrado que se trata de fundamento razoável para realização de um fim legítimo", prosseguiu.

A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, chegou a criticar o etarismo da população e destacou que o preconceito é maior entre as mulheres.

"O etarismo é uma das formas de preconceito dessa sociedade enlouquecida na qual vivemos, ser jovem e feliz sempre. Ninguém é jovem e feliz sempre, a não ser que morra antes de continuar. Feliz o tempo todo, neste mundo em que vivemos não é tarefa fácil", afirmou.

Ao longo do julgamento houve sustentação oral de advogados do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam), do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e da Defensoria Pública da União (DPU).

Todos atuaram como amicus curiae (amigos da Corte) no caso e defenderam a inconstitucionalidade do artigo do Código Civil. "Considerando a vigência deste dispositivo legal, a intervenção do Estado mostra-se excessiva, privilegiando o aspecto patrimonial em detrimento do existencial. O Estado invade um espaço que é a autonomia privada que deve regular", afirmou Maria Luiza Póvoa Cruz, do IBDFam. O procurador-geral do MP-SP seguiu o mesmo raciocínio ao sustentar oralmente no caso. "A noção patrimonialista da família deve sucumbir em face do princípio do afeto", pontuou o procurador-geral, enfatizando que a norma em debate atenta contra a dignidade e a liberdade dos maiores de 70 anos.

APESAR DA VITÓRIA, DECISÃO NÃO VALE PARA O CASO LOCAL

A decisão que reconhece a inconstitucionalidade da previsão do Código Civil que obriga o regime de separação de bensem casamentos que envolvem pessoas acima de 70 anos foi uma vitória nas palavras do advogado Ageu Libonati, responsável pela ação que derrubou a norma.

O problema é que a determinação da Suprema Corte não vale para o caso que embasou o julgamento. Isso porque o STF entendeu que a regra pode ser afastada nos casos em que houver "expressa concordância das partes com registro em escritura pública".

Como um dos cônjuges envolvidos nesta ação morreu em 2014 e não formalizou este documento. Ao JC, Ageu afirmou na noite desta quinta que iria se inteirar do acórdão do STF para avaliar eventual interposição de recurso.

O resultado, de qualquer forma, é motivo de comemoração, celebra o advogado. "O que mais vale não são os louros da vitória, mas as cicatrizes da boa luta. É uma decisão que vem em benefício da sociedade", disse.

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2 COMENTÁRIOS

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  • Toni sodate
    02/02/2024
    Concordo que se a pessoa no caso mais idosa no relacionamento colocar em documento su intenção de deixar algo para seu companheiro não se deve questionar salvo se ela estiver em sua plenitude de consciência. Mais caso a pessoa não deixar nada escrito em documento só rê suas intenções nada como seguir o que diz a lei.
  • ISIDORO NEVES DA FONTOURA NETO
    02/02/2024
    Porteira aberta para os golpistas...