A Igreja no Brasil iniciou as comemorações do centenário do nascimento de dom Hélder Pessoa Câmara (07/02/1909 - 07/02/2009). Cearense, era o décimo-primeiro filho de uma família de treze irmãos. Seu pai era jornalista, sua mãe, professora. Aos catorze anos entrou no Seminário da Prainha de São José, em Fortaleza, onde se formou em Filosofia e Teologia. Foi ordenado sacerdote muito jovem, em 1931. Em Juazeiro, quando jovem seminarista, esteve em contato com Padre Cícero e soube admirar e compreender essa figura aparentemente contraditória da história contemporânea brasileira. Com sinceridade e simplicidade, reconheceu que teve seu pecado de padre jovem: por algum tempo foi integralista, ou seja, adepto do movimento político de direita liderado por Plínio Salgado. Foi bispo auxiliar de dom Jaime Câmara, no Rio de Janeiro, onde realizou intenso trabalho religioso-social junto às favelas. Lembro-me de Dom Hélder durante um Congresso Familiar Latino-americano (MFC), frente a frente com o governador Carlos Lacerda, bravamente discordando dele em questões sócio-políticas.
Foi inspirador e co-fundador de dois importantes organismos da Igreja: o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano que congrega Bispos representantes de países da América Latina) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que todos bem conhecemos. Participou ativamente do Concílio Ecumênico Vaticano II convocado pelo Papa João XXIII, como “flor de inesperada primavera”. Foi amigo pessoal do Papa Paulo VI que, certa vez, carinhosamente o chamou de “meu bispo vermelho”!
Quando celebrou seu Jubileu de Ouro Sacerdotal, João Paulo II assim se expressou sobre ele: “Tua alma de pastor contribui para nossa santificação. Temos por ti especial amor. Deus te cumulou de dons, talentos e piedade. Conseguiste realizar numerosas missões de inestimável valor. Deus e os irmãos foram para ti dois pólos de um único arco donde brotam centelhas de amor”. Por longos anos foi arcebispo de Olinda e Recife. Nesse período sofreu injustas e desairosas incom-preensões do Regime Militar que, pela força e com ameaças, o fez calar, sobretudo nos meios de comunicação social. O governo militar, numa intrigada ação diplomática, impediu que dom Hélder fosse agraciado com a famosa honraria internacional do Prêmio Nobel da Paz. Num admirável gesto de humildade, recusou aceitar de Paulo VI a nomeação de cardeal, visando, assim, não provocar maiores atritos com o Regime Militar vigente. Vivia sem proteção, tantas vezes ameaçado de morte. Na sua modesta casa em Olinda, recebia na calada da noite, telefonemas como este: “Dom Hélder, lamento comunicar que na sua casa foi colocada uma bomba que deverá logo explodir”. Resposta do arcebispo: “Obrigado, meu irmão, por ter-me avisado, pois assim vou preparar-me para morrer”.
Certa vez recebeu uma inusitada visita: um homem valente chorando, de joelhos, segurando com as mãos algum objeto escondido no peito, por trás da camisa banhada de suor e de chuva. Preocupado, dom Hélder lhe diz: “Meu filho, você vai resfriar, vamos trocar de roupa e tomar um cafezinho bem quente”. Resposta do estranho visitante: “Perdão, meu padrinho, pois eu fui mandado para matar o senhor e não tive coragem; pegue a peixeira que estou segurando”. Numa outra ocasião, um agente de pastoral injustamente tinha sido preso numa delegacia. Dom Hélder telefonou para o delegado: “Doutor, pode soltar esse homem; ele é meu irmão de sangue”. Retruca o delegado: “Excelência, no sobrenome deste detento não consta Câmara”. E dom Hélder: “É meu irmão de sangue, no sangue de Cristo”. Esses fatos eu os ouvi, pessoalmente, contados a viva voz pelo próprio dom Hélder e aqui os transcrevi.
Dom Hélder Câmara, inteligente e humilde, marcado pelas agruras das secas do Nordeste. Impetuoso e sereno, austero consigo mesmo e afável com todos. Pastor zeloso e de ideais transformadores da sociedade e da Igreja. Poeta e místico, profeta da esperança, da paz e da não violência. Homem de Deus e da humanidade. Cidadão do Brasil e do mundo, nosso irmão de sangue, no sangue de Cristo. Nós te admiramos e continuamos te amando e venerando. Tua longa vida, 90 anos, foi uma preciosa semente por Deus plantada entre nós. Semente que germinou, cresceu e continua produzindo, por toda parte, abundantes frutos de justiça e paz, de solidariedade e amor.
O autor, frei Lourenço Maria Papin, é colaborador de Opinião