Cultura

‘Fúria de Titãs’ enfureceria Perseu e os Olímpicos

Cristina Rodrigues Franciscato, especial para o JC
| Tempo de leitura: 5 min

É lamentável Hollywood ter consumido US$ 125 milhões para realizar um péssimo filme no que diz respeito à visão de mundo mítica e, especificamente, à mitologia grega. Lamentável porque, com todos os recursos que a indústria do cinema tem, poderia criar um belo filme sobre o tema. “Fúria de Titãs” tem méritos nos grandiosos efeitos especiais, mas é só. O enredo é fraco, desconexo, distante do mito de Perseu e mais ainda do mundo dos Titãs. O objetivo aqui não é comparar o filme atual, de Louis Leterrier, ao primeiro (1981), dirigido por Ray Harryhausen, também distante do mito original. O foco é mostrar o abismo intransponível entre o enredo hollywoodiano e o mito grego.

Comecemos pelos Titãs, presentes no título, inexistentes no filme. Para entendermos a gênese do mundo, segundo os antigos gregos, precisamos nos reportar a uma obra do século VII a.C., a “Teogonia” de Hesíodo. Ela conta como, a partir do Caos, foi surgindo e se organizando o Cosmos. Os Titãs eram divindades primordiais e violentas. Derrotados por Zeus e por seus aliados da nova geração divina, foram aprisionados no Tártaro. Vitorioso, Zeus organiza o Cosmos e destina a cada deus um âmbito de poder, uma esfera de atuação. Começa por seus irmãos, Posídon e Hades. O primeiro será o senhor dos mares e oceanos, enquanto Hades reinará sobre o mundo ínfero. Longe de ser maléfico e demoníaco, como o deus retratado no filme, ele tem a necessária e importante função de organizar e controlar o reino dos mortos. Não estamos aqui no inferno cristão e Hades não pode ser equiparado ao demônio.

Perseu, o protagonista do filme, é de fato filho de Zeus com uma mortal, Dânae, mas ela não é esposa de Acrísio, rei de Argos, e sim sua filha. O rei - no filme tornado o vilão humano e parceiro de Hades - recebera um oráculo de que se Dânae tivesse um filho, ele mataria o avô. Acrísio manda construir uma câmara subterrânea e nela encerra a bela filha, para que nunca estivesse com um homem. Zeus, tomando a forma de chuva de ouro, penetra, sorrateiro, a reclusão da princesa: amando-a, a torna mãe de Perseu. Esse poético episódio foi imortalizado na pintura de Mabuse (1527) e de Tiziano (1553-4), entre outros.

Quando Acrísio descobre o ocorrido, coloca mãe e filho numa urna de madeira e os lança ao mar. A urna chega próxima à ilha de Serifo e é recolhida, como no filme, por um pescador. Seu nome é Dictis e, segundo algumas fontes, ele era irmão do tirano da ilha, Polidectes. No mito, mãe e filho são salvos e não apenas Perseu. A busca da terrível Górgona deve-se à exigência de Polidectes, quando o herói, já adulto, sugere ser capaz de tamanho feito. Existiam três Górgonas e Medusa era a única mortal. Tinha a cabeça repleta de serpentes e seu olhar transformava em pedra aquele que o fitasse. Perseu tem a ajuda de duas divindades para realizar tal façanha: Hermes e Atena.

A passagem pelas três Greias ou “Velhas”, que compartilham um único olho, é retratada no filme. Perseu rouba-lhes o olho e as faz revelar como chegar, não à Medusa, mas a determinadas Ninfas, possuidoras de instrumentos indispensáveis para a façanha heróica: um par de sandálias aladas, um alforje onde colocará a cabeça cortada do monstro e, o mais significativo, o capacete de Hades, capaz de tornar invisível aquele que o usasse. Notemos que, aqui, Hades não só não é inimigo, como o seu capacete auxilia o herói. A deusa Atena empresta para Perseu seu escudo, que o protege do olhar de Medusa e o permite vê-la indiretamente. Perseu consegue vencer o monstro e do sangue que jorra do pescoço cortado, nasce Pégaso, o cavalo alado. Cavalo que acompanhará as aventuras de outro herói: Belerofonte.

No regresso, Perseu passa pela Etiópia onde a princesa local (e não de Argos), Andrômeda, estava para ser devorada por um monstro marinho, devido à maldição causada por imprudentes palavras maternas: Cassiopeia dissera que a filha superava, em beleza, até deusas imortais. Perseu, usando a cabeça da Górgona, destrói o monstro, salva Andrômeda e se apaixona por ela. Deles, descenderá Héracles, o maior dos heróis gregos, aquele que realiza os Doze Trabalhos. A mãe de Héracles, Alcmena, é neta de Perseu e Andrômeda. Ao voltar com a jovem para Argos, Perseu mata, involuntariamente, o avô Acrísio, cumprindo as palavras do oráculo. Io, a personagem feminina que segue Perseu no filme e termina como sua companheira, no lugar de Andrômeda, faz parte, na verdade, de outra história.

]O mito de Perseu tem vários desdobramentos, mas o que nos interessa aqui, e que nos remete ao argumento central e mais equivocado do filme, é que o herói em momento algum luta contra os deuses (embora haja uma versão tardia do seu mito, onde se indispõe com Dioniso). Ao contrário, conta o tempo todo com a imprescindível ajuda divina para suas façanhas. Dentro da visão de mundo mítica e da piedade grega, humanos não empreenderiam uma luta contra os deuses (exceto numa passagem de “O Banquete” de Platão) ou destruiriam suas estátuas. Muito menos estátuas de Zeus, deus supremo do Olimpo. Aliás, deus que jamais seria tão facilmente enganado por Hades.

Há uma lógica no mito grego que não permitiria o enredo da “Fúria de Titãs”: os antigos sabiam o quanto fundamental é honrar os deuses. Tinham consciência de que existe uma medida própria aos mortais e que desrespeitá-la é perigoso (que em grego se diz cometer “hýbris”). Empreender luta contra poderes divinos é máxima transgressão. Se, como propõe o filme, a cidade de Argos se rebelasse contra os deuses, tal atitude seria vista por todos os demais gregos como loucura e passível de uma justificada punição divina. Os deuses são os fundamentos da existência, aspectos do mundo. Cada um deles representa um âmbito de poder que interage com a vida humana. Não há como desprezar impunemente as forças que representam. Porém, tais deuses tão pouco podem prescindir dos mortais, como sugerem algumas decisões do filme, e é nessa dialética que a vida segue em frente.

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