A ideia de que ser pai ou mãe se resume ao pagamento de pensão começa a perder espaço no Brasil. Com a sanção da Lei nº 15.240/25, o abandono afetivo passa a ter previsão expressa no ordenamento jurídico como ilícito civil, permitindo a responsabilização de genitores que se afastam do convívio e do cuidado emocional dos filhos, mesmo reconhecendo formalmente a paternidade ou maternidade.
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A nova norma consolida um debate que já vinha sendo travado nos tribunais há mais de uma década e fortalece o princípio da afetividade no Direito de Família. A partir de agora, a omissão prolongada em relação à presença, orientação e apoio emocional pode gerar indenização por danos morais, desde que haja comprovação do prejuízo psicológico sofrido pela criança ou pelo adolescente.
Ao inserir de forma clara o dever de assistência afetiva na legislação, a lei reforça que a parentalidade envolve mais do que garantir recursos materiais. O texto estabelece que pais e responsáveis legais devem oferecer presença, escuta, orientação e suporte emocional ao longo do desenvolvimento dos filhos.
Na prática, isso se traduz em atitudes concretas: acompanhar a vida escolar, participar de decisões importantes, oferecer apoio em momentos de dificuldade e manter convivência regular sempre que possível. A ausência reiterada dessas condutas, quando demonstrada em juízo, pode caracterizar o abandono afetivo.
Segundo a advogada Maria Eduarda Omena, especialista em Direito de Família e Sucessões, a principal inovação da lei é retirar o tema do campo subjetivo dos sentimentos. “O Judiciário não exige amor, mas avalia comportamentos. O foco é o descumprimento do dever de cuidado, que agora está claramente definido em lei”, explica.
Antes mesmo da nova legislação, decisões judiciais já vinham reconhecendo o abandono afetivo como causa de indenização. Desde o início da década de 2010, magistrados passaram a responsabilizar pais que, apesar de pagar pensão, se mantinham totalmente ausentes da vida dos filhos.
As indenizações fixadas variaram, em geral, entre R$ 20 mil e R$ 100 mil, levando em conta a gravidade da omissão e os impactos emocionais comprovados. Tribunais estaduais como os de São Paulo, Minas Gerais e Goiás consolidaram o entendimento de que a obrigação alimentar não substitui o dever de convivência e cuidado.
Em situações extremas, algumas decisões chegaram a autorizar a retirada do sobrenome paterno do registro civil, quando a manutenção do vínculo formal agravava o sofrimento psicológico do filho diante de uma paternidade meramente nominal.
O divisor de águas ocorreu em 2012, quando a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu, de forma expressa, a possibilidade de indenização por abandono afetivo. Na ocasião, a ministra Nancy Andrighi destacou que o cuidado é um valor jurídico essencial e que a responsabilidade civil também se aplica às relações familiares.
Desde então, o STJ vem reafirmando que não se discute a obrigação de amar, mas sim o dever legal de cuidar. O tribunal também passou a admitir, em casos específicos, a desconstituição da paternidade registral quando comprovada a total ausência de vínculo socioafetivo.
Com a entrada em vigor da Lei 15.240/25, esse entendimento ganha respaldo normativo, reduzindo divergências e fortalecendo a segurança jurídica.
A nova legislação tende a impactar diretamente ações de família já existentes, como processos de guarda, alimentos e regulamentação de convivência. A falta de participação emocional poderá ser analisada de forma mais objetiva e, em casos graves, fundamentar pedidos de indenização por danos morais.
Crianças e adolescentes, representados legalmente, passam a ter um instrumento mais claro para buscar reparação pelos prejuízos causados pelo afastamento emocional prolongado. A responsabilização, no entanto, recai exclusivamente sobre pais e responsáveis legais, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Para especialistas, a lei não substitui outras obrigações parentais nem resolve conflitos familiares complexos, mas funciona como um mecanismo de compensação e também de prevenção, ao incentivar maior envolvimento dos genitores na vida dos filhos.
Relatos de figuras públicas sobre pais emocionalmente ausentes, como os que ganharam repercussão recente na mídia, ajudaram a ampliar o debate fora do meio jurídico. Esses episódios evidenciam que o abandono afetivo não é apenas um conceito teórico, mas uma realidade vivida por muitos filhos ao longo da infância e da adolescência.
Com regras mais claras, a expectativa é que a Justiça passe a decidir com maior previsibilidade, exigindo provas consistentes tanto da omissão quanto do dano psicológico. O desafio, segundo juristas, será evitar a banalização das ações indenizatórias, mantendo o foco na proteção integral de crianças e adolescentes.
A nova lei inaugura, assim, uma fase em que o cuidado emocional deixa de ser apenas um ideal moral e passa a ter peso jurídico concreto, redefinindo os limites da responsabilidade parental no Brasil.