GAZETILHA

De onde viemos, para onde vamos?

Por Corrêa Neves Jr. | Editor do GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 8 min

"A cada passo rumo ao desconhecido, os aventureiros abrem portas para a história, iluminando terras esquecidas e caminhos inexplorados"
Theodore Roosevelt, ex-presidente americano 

Franca ainda não existia em meados do século XVIII. A terra das Três Colinas era então uma região inexplorada, habitada por tribos de indígenas caiapós, dominantes numa vasta área que se estendia do que hoje conhecemos como rio Pardo até o Grande, chegando também ao Triângulo Mineiro. Viviam da extração de frutas, da pesca e de algum cultivo rudimentar de mandioca e milho.

Naqueles tempos de Brasil Colônia, cabia aos bandeirantes explorar o vasto interior desconhecido. Desde o século XVII, bandeiras saídas da capitania de São Vicente e do então povoado de São Paulo passaram e se embrenhar cada vez mais pelo interior, rumo ao Centro Oeste. Era a busca pelo ouro e, também, pela nada honrosa captura e escravização de indígenas.

A partida de cada uma dessas bandeiras era um acontecimento. Exigia meses de preparação para uma ‘aventura’ que se estenderia por outros tantos meses – não raro, anos. Na maior parte dos casos, eram compostas por 90 a 300 pessoas, entre seus líderes (bandeirantes, os únicos armados), guias indígenas, e também negros e indígenas escravizados. Os comandantes iam no lombo de cavalos ou mulas. Os demais, enfileirados, seguiam a pé, margeando os rios conhecidos ou, quando necessário, abrindo picada. Levavam consigo carne seca e farinha de mandioca, base da alimentação, que se somava a alguma caça ou pescado que encontrassem pelo caminho. Também carregavam ferramentas de mineração.

Uma destas bandeiras, liderada por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera II, partiu da Vila de São Paulo em 1722 para uma jornada que se estenderia por três anos. Atravessaram o rio Tietê e atingiram a região do Triângulo Mineiro, antes de cruzarem o rio Paranaíba e penetrarem na área hoje conhecida como Goiás. Só assentaram em 1725, no local onde fundaram o povoado de Vila Boa de Goiás (atual Cidade de Goiás), no Vale do Rio Vermelho. Tinham encontrado ali ricas jazidas de ouro.

Foi esta bandeira que definiu o “Caminho dos Goyazes”, a ligação entre São Paulo e as minas de ouro de Goiás. E é num ponto deste caminho que surgiria, no final do século XVIII e início do século XIX, o Belo Arraial do Capim Mimoso, um agrupamento de umas poucas casas de taipa, às margens de um córrego cheio de bagres, que servia de parada para descanso e reabastecimento para os grupos de exploradores que se multiplicavam pela rota do ouro. Era o embrião de Franca.

O pequeno vilarejo crescia devagar. A cada nova leva de exploradores, um ou outro resolvia desistir da empreitada e fixar ‘pouso’ no Belo Arraial do Capim Mimoso. Havia também indígenas entre os moradores. Escravos. Mas era ainda pouca gente.

Foi só em 1805 que as coisas começaram a ficar mais sérias. A rota de São Paulo a Goiás estava a essa altura bastante movimentada. O Belo Arraial crescera. Havia uma modesta igreja, dedicada à Nossa Senhora da Conceição. Um pequeno comércio, que cuidava especialmente do abastecimento das caravanas, e também plantações e gado.

Pela posição estratégica na divisa entre as províncias de Minas Gerais e São Paulo, além da relevância para abastecimento de quem utilizava a rota até as minas de Goiás, a Coroa decidiu fazer do povoado uma freguesia – ainda menor que uma vila, mas já com estrutura administrativa. Foi em 29 de agosto de 1805 que acabou criada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Franca do Rio Pardo. Administrativamente, estava subordinada à Vila de Mogi Mirim. O “Franca” do nome era uma homenagem ao Capitão-geral da Capitania de São Paulo, o militar e administrador colonial português Antônio José da Franca e Horta.

O status de vila para Franca viria apenas duas décadas depois. Primeiro, foi criada a Vila Franca del Rey, em 1821, a pedido do Capitão de Ordenanças Hipólito Pinheiro, filho de portugueses, natural de Congonhas do Campo (MG). Graças ao cargo, era autoridade competente para administrar regiões do reino. E viu aqui potencial, muito potencial.

O sufixo “Del Rey” era uma homenagem ao monarca português Dom João VI – nunca é demais lembrar que o Brasil ainda não era uma nação independente. Começaria então uma disputa territorial com Jacuí, que queria que a região fosse anexada a Minas Gerais. Foram três anos de confusão.

Quando finalmente foi instalada, em 29 de novembro de 1924, o Brasil já era um império, governado por Dom Pedro I. E assim, em homenagem a ele, a vila que nasceu Del Rey foi batizada Vila Franca do Imperador. O vilarejo, numa região alta e de clima ameno, reunia algumas centenas de pessoas em casas ainda muito humildes, espalhadas no entorno da Igreja Matriz. Sua população era composta por uma minúscula elite, colonos, índios e negros escravizados. A economia continuava baseada no pequeno comércio que abastecia quem ia para as minas de Goiás e de lá voltava, além de algumas plantações e pecuária. Tudo muito modesto.

Nas décadas seguintes, cada vez mais gente que percorria a estrada dos Goyazes resolvia ficar por aqui. Trazia consigo os costumes, o jeito próprio de falar. Viriam depois os italianos, que imigraram em massa para o Brasil, os sírios e libaneses, alguns judeus, orientais – especialmente, uma pequena colônia japonesa.

Tudo isso junto e misturado, ao longo de décadas, resultou nesta Franca moderna que não é 100% paulista nem mineira, que tem costumes próprios, um sotaque único, berço de grandes intelectuais, políticos, empresários, atletas, artistas. É difícil explicar quem somos, como somos e porque somos para quem não é daqui.

O francano típico ama música sertaneja, talvez reflexo deste fluxo migratório do Centro-Oeste que estava na sua gênese. No paladar e no jeito de falar, as influências mineira e goiana são evidentes – do frango caipira ao tropeiro e pamonha, passando pelos “uai” e vocabulário recheado de diminutivos, palavras com final cortado e loooongos ditongos...

Para fazer negócios ou empreender, é um misto do arrojo paulista com a matreirice mineira. Somos tão peculiares que Franca talvez seja a única cidade do Brasil onde o basquete é o esporte de referência, por mais que o futebol também esteja entre as paixões. Somos brasileiros, como tantos milhões, mas também somos singulares, diferentes, ao nosso modo, dos demais.

Dois séculos depois do surgimento da Vila Franca do Imperador, a Franca contemporânea é uma das 100 maiores cidades do Brasil, a segunda melhor para se viver. Atravessou muitos ciclos econômicos, viu seu nome virar referência de qualidade de café, da produção de calçados, e também como o lugar onde surgiu o Magalu. Hoje, nenhuma associação única traduz a cidade, que é também um centro educacional, com escolas de excelência na área do Direito; virou celeiro de empresas de e-commerce; mantém o calçado como relevante, assim como o café; tem fábricas de chocolate que vendem para todo o país, indústrias de lingerie e uniformes; produz ainda itens de higiene que estão em hotéis espalhados de norte a sul. Caminha para os 500 mil habitantes nas próximas décadas.

O que esperar da Franca do futuro? Dependerá, muito, de movimentos que serão feitos por seus dirigentes nos próximos anos. A cidade acaba de inaugurar a maior unidade do Sesc do estado de São Paulo, um investimento de R$ 200 milhões. Nos próximos meses, será inaugurado o Hospital Estadual, com a expectativa de suprir uma lacuna histórica que leva pacientes do sistema público de saúde a esperas sofridas e injustificáveis. É um investimento superior a R$ 150 milhões.

A iniciativa privada tem feito muitos investimentos, de lançamentos imobiliários ao colosso em que se converteu o Luiza Labs, do Magalu, com milhares de funcionários. O Franca Shopping promete expansão. Novas concessionárias de veículos se multiplicam. Há muita coisa boa por acontecer.

Para que a cidade possa alcançar toda a potencialidade que sua população merece, é preciso que sua classe política acompanhe e lidere no ritmo e intensidade do setor privado. Nas últimas décadas, sucederam-se prefeitos e vereadores muito preocupados com o dia a dia, com a burocracia que, apesar de importante, atrofia. É preciso que recuperem a capacidade de sonhar experimentada por gente como Hipólito Pinheiro, que viu aqui o lugar ideal para instalar um vilarejo quando Franca era só um amontoado de casas de pau-a-pique.

Precisamos arriscar mais. Trocar o arroz com feijão conhecido, seguro, mantra das últimas administrações, por receitas mais ousadas, que embutam algum risco, mas que tragam consigo o prazer das descobertas. É urgente mudar a forma de fazer algumas coisas, olhar para fora e ver o que funciona em outros lugares e adaptar à nossa realidade.

Faltam parques, faltam avenidas largas, falta asfalto de boa qualidade, faltam centenas de câmeras de segurança, faltam serviços públicos efetivamente informatizados, falta uma área de projetos capaz de formular propostas estruturantes que recebam financiamentos, falta um transporte público decente, falta um pouco mais de atenção na área de saúde, falta uma melhor coordenação para que as empresas de tecnologia possam se expandir adequadamente, falta um ação efetiva, inédita, que possa reduzir a população de rua com respeito, falta um projeto de cidade que apaixone os orgulhosos francanos. Nada disso é culpa de ninguém, isoladamente. Há virtudes e problemas em todos os governos, do atual aos que o precederam.

Mas fazer tudo do mesmo jeito, esperando um resultado diferente, é a própria definição de loucura. Chegou a hora de algumas mudanças importantes, para que os resultados sejam melhores e a cidade consiga um novo salto, tão necessário. Porque o que mais falta, neste momento, a toda classe política, é criatividade para projetar o que nem se imagina ainda, e coragem para ousar. O risco compensa. Franca e sua gente precisam – e merecem - um salto rumo ao futuro.

Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.

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Comentários

8 Comentários

  • Ivanil Pedro 1 dia atras
    Bela matéria da cidade que nasci e cresci, e que amo imensamente pelo seu clima, cultura e sua gente.
  • Dirce Rodrigues 1 dia atras
    Parabéns por descrever tão bem nossa amada Franca.Que esse texto nos desperte esse o desejo de criar,inovar, ousar rumo ao um crescimento pessoal e profissional. Vale lembrar também a importância que alguns aqui residem que nos ajuda0 superar as nossas dificuldades com amor e fé ,a criação do Hallel que leva alegria e louvor com pregações, músicas, entre as pessoas, e hoje internacionalmente conhecido. Gratidao à Tia Lolita que teve essa coragem.
  • Wellington Daniel Dias 2 dias atrás
    Texto fantástico!
  • EDUARDO TOZZI BONILHA 2 dias atrás
    Olhar para o futuro, hoje, é pensar em crescimento sustentável. Em reflorestamento, em conservação ambiental, em valorização dos aspectos naturais da cidade. E isto só vai acontecer se deixarmos o individualismo e as paixões políticas de lado e focarmos no bem coletivo. Franca é especial, mas ainda precisa cuidar melhor de seus habitantes. Precisa de saneamento: a cidade anda suja, maltrapilha, com recorrentes surtos de doenças infectocontagiosas, um claro sinal de descuido administrativo. Precisa de mais lazer, de mais entretenimento saudável, de mais cultura, de mais opções de desenvolvimento para sua juventude. Precisa se reintegrar à natureza.
  • Flavio Mello 2 dias atrás
    Texto lúcido e de bom senso. E preciso que chegue aos olhos certos e os deixem pelo menos pensativos.
  • Rosângela 2 dias atrás
    Gostaria de parabenizar quem escreveu esse magnífico texto,conheci um pouco da História da nossa cidade.
  • Ligia Gonçalves Dias Pedrosa 2 dias atrás
    Admiro a sua forma de escrita. Interessante saber da história de Franca, dos primórdios aos dias atuais. Obrigada por sua dedicação e por compartilhar o que sabe!
  • Mauro 2 dias atrás
    Excelente texto Correa Neves Jr. Parabéns!