Vida

A psicologia e a vida inautêntica

Por Redação |
| Tempo de leitura: 5 min

VONTADE DE SABER

CLAUDEMIR GOMES

Na crônica de hoje, o que se entende sobre a vida é o tema da reflexão. São muitas as possibilidades de se pensar a vida, entretanto, poucas pessoas pensam sobre ela, pois a grande maioria apenas pensa nela, ou sobre os problemas que acontecem em sua vida. Com muitas pessoas que converso parece haver uma certa divisão entre elas e a vida. A própria divisão exclui a vida como algo que lhe pertencesse e pela qual se faz responsável. Ora a vida é tomada como destino, alheio à pessoa que decide vivê-la, outrora a vida é tomada no desespero das situações do cotidiano, não havendo qualquer elaboração do que isso seja. Na fenomenologia de Heidegger, há o emprego sistemático da palavra Dasein, que significa o dispositivo constituído no ser humano que o impele a viver a vida, por ela decidir e a se jogar no mundo. Nesse modo de pensar, observa-se que a essência da vida consiste em sua existência, isto é, que o Dasein - ser-aí - é a sua possibilidade de realização, e que a existência é sempre minha e, por isso, deve ser construída e conquistada. Essa possibilidade, essencial ao existir humano, permite compreender que o Dasein sempre se encontra diante da alternativa de realizar uma existência autêntica ou perder-se na existência inautêntica. Quando se pensa em existência inautêntica, o que se vê são projetos e ideias que não se realizaram. E que a perda dessas possibilidades deixa, na pessoa e em seus sentimentos, um rastro de frustração e de desencanto. Quantas pessoas vivem hoje à sombra do que poderiam ter sido, dos lugares onde poderiam estar vivendo e se realizando? São muitas, quase a maioria de todos nós. Como teria sido se não houvesse o medo de decidir o que se queria ser? As pessoas sabem que quase nunca a possibilidade de reversão existe, pois, o tempo transforma o mundo e o espaço já não existe mais; a circunstância agora é outra e traz com ela novos implicativos. Assim, a vida inautêntica vai se processando no decorrer dos anos. Nessa situação, a pessoa sente que vive apenas nas condições mínimas desejadas, e que no dia-a-dia vive com o que sobrou ou com os pedaços dos sonhos e dos projetos. Vive sem se esquecer, pois os sonhos e os projetos, enquanto sentimentos carregados de afetos, não envelhecem e nem morrem. Nessa circunstância, parece que se impõe uma divisão na alma: de uma vez, cheia de saudades do que poderia ter sido e vivido, de outra vez, a angústia do não ter conseguido ser. E o que sobra disso? Sobra apenas a condição da vida vegetativa, vive-se apenas pela manutenção do que sobrou. E, às vezes, o que sobrou são os filhos, uma casa, um marido, um desencontro, o envelhecimento, a finitude da perspectiva de ser. É o que Heidegger chama de vida inautêntica. Ele diz assim: "Na existência quotidiana, da existência inautêntica, o Dasein se confunde com 'todo mundo', em cujo anonimato dilui sua responsabilidade e sua originalidade. Necessariamente 'situado', o Dasein se encontra posto ou jogado no mundo à sua revelia, sempre à mercê do medo e da angústia. Normalmente oculto pela quotidianidade da existência. O sentimento de abandono e a solidão revelam a realidade mais profunda da condição humana, e a falta do reconhecimento é a característica da existência inautêntica". O que fazer quando a vida inautêntica rouba das pessoas o sentido de existir? Quando a pessoa se confunde com as coisas de cada dia, que não vê e nem assiste à passagem do dia, sentindo-se presa a uma rotina sufocante? O que fazer quando a insegurança e o medo prioriza, a maior, a estabilidade e a acomodação? O que fazer quando a pessoa assiste passivamente aos anos se passarem e nota que o seu corpo vem perdendo a motivação da diferença? O que fazer diante dessas inquietações? Heidegger (in: Enciclopédia Mirador Internacional, p. 5682) destaca que na vida inautêntica nada se poderá fazer, pois a pessoa já perdeu o poder de realizar as mudanças. Afirma ainda que: " A análise da existência inautêntica nos mostra que a angústia, normalmente velada pela preocupação, revela a estrutura do Dasein, apreendido em sua totalidade. Ao contrário do medo, que se refere sempre a um objeto determinado, a angústia é o sentimento da estranheza e da insegurança, em um mundo no qual o homem se sente só e desamparado. A estrutura do Dasein, revelada pela angústia, apresenta o existente como o ser projetado, ou que se projeta, como o ser que está no mundo e o ser jogado aí. […]Sempre incompleto, ou inacabado, procurando realizar projetos que jamais se cumprem integralmente, o Daseins não é afetado pela morte como um acontecimento exterior, mas é, essencial e constitutivamente, um ser-para-a-morte. A angústia, que revela a temporalidade e a mortalidade do Dasein, permite, assim o acesso à existência inautêntica". Nesse sentido, para que haja mudança, é necessário que a pessoa opte por uma vida autêntica. E o que isso quer dizer e qual é a diferença? Isso significa que a vida autêntica implica inicialmente a tomada de reconhecimento do que a pessoa fez consigo mesma. Esse reconhecimento é o princípio da diferença. Nesse sentido, vê-se que a acomodação cede lugar à inquietação, a indiferença cede lugar à implicação. Acontece assim, o início de um sentimento onde a pessoa deseja retomar a sua vida como um lugar de realização. Os projetos e sonhos, adormecidos, retornam à vida e se mostram insurgentes como quem se rebela contra alguma coisa que está errada. Heidegger assim declara: "Surgindo como um poder ser, o dasein, sempre inconcluso, é essencialmente projeto, consciência de suas possibilidades e empenho ou propósito de realizá-las no mundo […]Desenrolando-se no tempo, o Dasein manifesta a sua historicidade, que não é um quadro exterior à existência, mas a forma de sua essencial temporalidade […]Em sua essência, o Dasein é pois, organizador ou criador do mundo, não só por que produz objetos, mas porque lhes confere significação. Projetar-se, ou transcender-se, é, para o Dasein, constituir o mundo, enquanto conjunto de suas possibilidades […]". A vida autêntica é, por conseguinte, a vida plena. Vida tomada como projeto onde a possibilidade de realização temporal se faz presente, cheia de coragem e decidida a enfrentamentos necessários objetivando a superação e a transformação. Onde havia a acomodação e a falta de sentido, agora há a iniciativa de se fazer e de viver.

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