Em tempos de motosserra e correntões que, acionadas por dois tratores, exterminam florestas, é de outro machado que o Brasil precisa. É do Machado de Assis, o maior escritor brasileiro. Viveu de 1839 a 1908, fundou a Academia Brasileira de Letras, sua obra é imperecível. Tivera escrito em inglês ou francês, e seria o mais consagrado escritor do planeta.
Por que falar em Machado em pleno 2024? Porque ele é redescoberto nos Estados Unidos e na Europa. Mereceria atenção maior em seu berço natal. Para ter uma pálida ideia do que foi o "Bruxo do Cosme Velho" na literatura brasileira, é preciso visitar a "Ocupação Machado de Assis", na sede do Itaú Cultural, que vai se encerrar no próximo dia 4 de fevereiro. É gratuita a entrada na Avenida Paulista, 148, aberta de terça a sábado, das 11 às 20 horas. Domingos e feriados, das 11 às 19. Não percam.
O assíduo funcionário público, tão comprometido com o que fazia que não faltava nem se atrasava, era um profundo conhecedor da alma brasileira. Aqui em Jundiaí, tivemos uma excelente estudiosa da vida e obra de Joaquim Maria Machado de Assis, que nasceu e viveu no Rio de Janeiro e que nunca foi à Europa. Era Mariazinha Congilio, divulgadora de toda a estupenda produção que inclui romances, contos, poesias, ensaios e artigos publicados em jornais. Sim, Machado era articulista que nunca deixou de elaborar textos curtos e atraentes, para seduzir os leitores da mídia carioca.
Ele é sempre redescoberto, porque seus temas são atemporais e recorrentes. No momento em que o Brasil se preocupa com o racismo estrutural e a população negra e parda é muito superior à branca, é importante lembrar que esse pardo abordou explicitamente a questão racial nos seus escritos. De forma implícita, ele ironiza no conto "A Mulher Pálida", a volúpia do rapaz que procura a mulher mais branca do mundo para se casar. É uma sátira à obsessão brasileira pela branquitude europeia, só recentemente antagonizada pelo saudável refrão "black is beautiful".
Mas de maneira mais expressa, o racismo está na violência física e simbólica experimentada pelo menino Prudêncio no fabuloso "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e na exploração do tema do elemento servil, contida no "Memorial de Aires".
Os educadores brasileiros deveriam indicar a vastidão do pensamento machadiano a alunos de todos os níveis de ensino. Além da literatura da melhor qualidade, a sugerir apreço ao estilo e à exação ao exteriorizar o pensamento por escrito, os livros de Machado são uma crônica abalizada sobre a sociedade brasileira no século XIX.
Leitor voraz, ele captou a melhor influência de todos os autores disponíveis em sua época. Utilizou-se, por exemplo, de Stendhal, cuja edição em francês de "O Vermelho e o Negro" é citada pelo autor-defunto personagem de "Memórias Póstumas". No trecho em que ele se compara com o francês, evidencia, com sarcasmo, falsa modéstia: "Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará, é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco".
Machado é lido por milhões. E comentado por muitos mais. Lembro-me de Lygia Fagundes Telles a discutir com Esther de Figueiredo Ferraz, se Capitu traiu ou não Bentinho, no romance "Dom Casmurro". E sempre recorro à sua receita, quando me pedem para ingressar na Academia Paulista de Letras. Falando sobre a Academia Brasileira, ele dizia: "Ela tem de possuir escritores, pois é de Letras. Celebridades, para repercutir. Jovens, para alegrar o ambiente. Acima de tudo, uma Academia deve ser uma "Casa de Bom Convívio".
As obras completas de Machado de Assis estão sendo reeditadas pela Editora Todavia. Não há motivo para não se visitar a "Ocupação" e para não ler - ou por que não, reler - o imprescindível e imperecível Machado.
José Renato Nalini é reitor de universidade, docente da Pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)