Opinião

Águas de março

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Semana passada, chovia a cântaros, no bairro onde trabalho. Observei a água que caía, com prenúncio de estragos para pequenos comerciantes e para famílias que residem em locais inadequados, devido à situação de pobreza. Raios e trovões ininterruptos. A mãe de um aluno nosso, de curso semiprofissionalizante, me passou uma mensagem pedindo que ele fosse para casa. São os dois apenas. Um raio atingiu a telha e rompeu a viga do telhado sem forro. Não se assustou com o risco, mas com a água que se espalhava sobre sua cama e que não aguentaria puxar sozinha. Minha alma inundou de lágrimas. Deu um aperto no peito pela dor do povo que vê em ruínas o pouco que possui.

Recordei-me, primeiro, de um clássico da música brasileira, "Águas de Março", composto por Tom Jobim em 1972, que gosto de ouvir na voz de Elis Regina.

Certa vez, Jobim mencionou que compôs a música em um momento de muita tristeza. Encontrava-se sem esperança, bebia muito, dizia-se deprimido porque ninguém ouvia suas músicas.

"Águas de Março" se manteve no topo e ultrapassou sua geração, trazendo reconhecimento ao artista. Foi um momento de vitória.

Da música: "... É madeira de vento, tombo da ribanceira/ É o mistério profundo, é o queira ou não queira/ É o vento vetando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumeeira/É a chuva chovendo, é conversa ribeira

Das águas de março (...) É uma ave no céu, é uma ave no chão/ É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão/ É o fundo do poço, é o fim do caminho/ No rosto um desgosto, é um pouco sozinho..."

Veio-me também a "Balada da Caridade" de meu tempo de jovem nos movimentos da Igreja, como o TLC, em que cantávamos como missão. Era uma das músicas, na época, preferidas do saudoso Dom Joaquim Justino Carreira, ainda seminarista. "Para mim a chuva no telhado/ É cantiga de ninar/ Mas o pobre meu irmão/ Para ele a chuva fria/ Vai entrando em seu barraco/ E faz lama pelo chão. / Como posso/ Ter sono sossegado/ Se no dia que passou/ Os meus braços eu cruzei? / Como posso ser feliz/ Se ao pobre meu irmão/ Eu fechei meu coração/ Meu amor eu recusei?"

No retorno do trabalho, avistei um morador de rua que seguia com seu carrinho de recicláveis, envolto em um saco de lixo. Mais à frente, debaixo do beiral de uma casa, um outro que parecia aguardar que cessasse o pé-d'água para prosseguir sem rumo e telhado.

Imagino o que seja perder tudo em uma tempestade, incêndio ou qualquer outro incidente e ainda se perder debaixo de escombros. O rio que transborda traz até corpo que estava preso à margem. Aconteceu aqui.

O jovem da viga atingida pelo raio calçou-a com um pedaço de madeira e agora aguarda se uma instituição pública poderá arcar com o material, a fim de que alguns amigos e vizinhos, em regime de mutirão, possam recuperar a cobertura.

Não é gente com dinheiro aplicado, como incontáveis, que possa arcar com os custos de um infortúnio. É gente que olha temorosa o céu para verificar se há riscos de aguaceiro. É gente que dorme desassossegada por não saber o que a noite encoberta anuncia.

Retorno à canção de Tom Jobim: "... são as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração".

Que haja esperança de compaixão e de braços em movimento para ajudar o irmão.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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