Mãos do coração

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Ao conhecê-la estava com 17 anos. Seu olhar, desfeito de sonhos comuns de sua idade, continham um grito de socorro. Encontrávamo-nos quando ela fazia as unhas como modelo do curso. A aluna, que tratava de sua mão, por demais dedicada, bem como a professora, pediam-lhe que me mostrasse o seu trabalho. Aproximava-se com o seu jeito tímido de ser e eu as aplaudia. Desde o início, me motivou a vontade de lhe dar colo. Era essa a forma com que a acolhia.

Recordo-me do poema "Desencanto" de Manuel Bandeira (1866 - 1968): "Eu faço versos como quem chora/ De desalento… de desencanto…/ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto./ Meu verso é sangue./ volúpia ardente…/ Tristeza esparsa… remorso vão…/ Dói-me nas veias. Amargo e quente,/ Cai, gota a gota, do coração./ E nestes versos de angústia rouca,/ Assim dos lábios a vida corre,/ Deixando um acre sabor na boca./ - Eu faço versos como quem morre." Ela me inspirava tentar mudar o sabor amargo de seu cotidiano.

Diversos me falavam que usava drogas ilícitas. Respondia-lhes que, se fosse verdade, por que não a ajudavam em busca de tratamento ou em ouvi-la a fim de colaborar em suas dores e dissabores. Tenho comigo que fugir da realidade, da forma que for, independente da classe social, está muito além do prazer pelo prazer. Há amarras que alguns não conseguem desenrolar e temem ser motivo de escárnio para procurar ajuda. Existem os que consideram que abrem mão do vício na hora que desejarem.

Não me interessa saber quem usa ou não, exceto se puder socorrer em alguma coisa.

Depois de um ano de presença semanal, em que observava o seu encanto pelas mãos com unhas primorosas, não mais nos vimos. Casara­-se e fora morar em uma cidade vizinha.

Ao vê­-la de volta, anos mais tarde, estava aparentemente judiada e com os olhos melancólicos. Disse-me dos problemas com o marido que, embora tentassem, impossível a convivência. São dois filhos. Um deles aprendera a consumir a "fumaça funesta" com o pai. Difícil!

Seu sonho de menina era ter uma família de verdade, ou seja, em que cuidasse e fosse cuidada e não colocada às margens. Complicado ouvir todos os dias: "Você não serve para nada". Nas notas baixas na escola, por não conseguir compreender a matéria, ao chegar com o boletim, escutava que era "burra". Agiria de maneira diferente com o marido e os filhos que viessem.

Com o companheiro "recuperou" os maus-tratos, mas pelos filhos se arriscou.

Atualmente, reside nas proximidades da mãe, que prossegue sem suportá­-la e vira a cara para os netos. Embora já vivenciara as atitudes maternas, dói nela o desprezo com seus filhos.

Perguntou-me se me recordava de suas mãos de outrora, com unhas perfeitas e tons variados. Mostrou-me, com orgulho, como estão agora: encardidas e as unhas tortas, ásperas, acinzentadas... Para sustentar os filhos, trabalha em um depósito de recicláveis. O benefício que recebe, paga a luz e a água e o resultado de seu trabalho transforma­-se em alimentos. Afirmou-me que se alegra com suas mãos sem beleza de acordo com a vaidade feminina, mas com a marca de quem zela por aqueles que trouxe ao mundo. O único problema é a dor da tendinite pelo movimento repetitivo.

Não tenho dúvida de que são mãos do coração.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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