É uma cena insólita e comigo ela já aconteceu algumas vezes: durante o exame clínico de um paciente, com ele deitado na maca, após realizar a palpação na parte superior do abdômen, noto dores e retrações na região do fígado. Quase que instantaneamente eu comento com o paciente que ele possui alguma desarmonia na vesícula biliar.
"Eu não tenho mais vesícula doutor, ela foi retirada há alguns anos", comenta o paciente, meio sem graça de me contrariar no comentário.
Costumo responder, sem me abalar, que o órgão em questão pode ter sido retirado, mas a energia dele continua atuante no sistema do paciente.
Diferentemente de outras tradições, como na indiana, onde se relacionam centros puramente energéticos com as funções fisiológicas, a medicina tradicional chinesa coloca como sede dos "vórtices" energéticos os próprios órgãos e vísceras aos quais eles estão relacionados.
Dessa forma é muito comum ouvir falar da "energia do fígado" ou dissertar sobre o aspecto yin ou yang da "energia do rim".
Vamos esclarecer algumas coisas: a energia que movimenta as funções fisiológicas não emana destes órgãos, o mais correto é pensar que esses órgãos fazem parte da emanação dessa energia.
A ideia da medicina chinesa é que não existe separação entre matéria e energia, sendo cada um a continuidade do outro. Da mesma forma não existe separação entre o meio interno e o externo, um é continuidade do outro e cada elemento "de fora'' tem o seu correspondente "interno".
Segundo esse pensamento, sabemos que a energia da primavera advém do angulo de incidência da luz no nosso planeta em dado período do seu ciclo de translação em torno do sol.
A energia luminosa é a mais representativa das formas energéticas desse período e desperta os seres vivos da latência do inverno. Essa mesma luz de energia estimula a atividade e o desejo de vida nos organismos mais complexos.
No nosso corpo essa energia é codificada por núcleos energéticos que estão diretamente acoplados com o órgão fígado e a sua víscera, a vesícula biliar. Eles promovem atividades digestivas, depurativas, mas não só. Essa energia estimula a nossa vontade e "garra" de vencer.
Ela atinge o nosso cérebro e todas as outras partes do corpo, chegando até elas através de estruturas do tecido conectivo chamadas fáscias e através dela tem relações com tecidos nervosos, tecidos endócrinos (as glândulas e hormônios que elas secretam) e órgãos do sistema imunitário (o sistema de defesa do organismo).
Assim como se eu, por acidente, cortasse a pele e tecido conectivo no trajeto do meridiano do fígado ou da vesícula biliar, essa energia continuaria correndo, utilizado um desvio e canais auxiliares recobrando depois o seu fluxo normal após a cicatrização.
Da mesma forma, a retirada de um órgão não implica no fim do fluxo da energia que o movimenta, até mesmo porque isso significaria o fim da vida daquele organismo.
A vida sempre encontra um caminho e, depois da cicatrização no local da cirurgia, a energia ainda continuará fluindo e dela virão as funções necessárias para a sobrevivência.
Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em Medicina Tradicional Chinesa e Osteopatia.