Identificando-se

O "veja o que me tornei" martela na minha cabeça

29/09/2022 | Tempo de leitura: 3 min
Maria Cristina Castilho de Andrade

Vinte e um de setembro. Quando fechava o portão de casa, o moço apressou o passo em minha direção. Em princípio não me parecia conhecido. Alto, barba e cabelos compridos em desalinho, quatro sacos enormes dependurados nos ombros. Uma espécie da alpargata surrada, aparecendo alguns dedos. Deteve-se no meio da rua, creio que preocupado em me assustar. Disse em alto tom: "A senhora é a Da. Maria Cristina da Pastoral da Mulher, não é?" Respondi que sim, sorrindo para ele. "Eu sou o Paulo César, neto da Da. Mariazinha" - os nomes não são reais.

Comovi-me! Completou sem sorrir, o olhar de dor e lamento: "Veja o que me tornei." Não me pediu nada. Completou o seu percurso mancando, talvez pelo peso que carregava ou por problema outro. Paralisou-me por alguns instantes e me vieram anos atrás. A mãe chegou primeiro para a Pastoral da Mulher, contudo ficou pouco. Estava dominada pelas ruas sombrias, pelos becos, onde encontrava o anestésico para suas angústias, que talvez nem ela mesma conseguiria decifrar. A avó assumiu os dois netos e passou a frequentar as reuniões. Chegavam de mãos dadas com ela. Às vezes, um pouco sonolento, sentava em seu colo e adormecia com a cabeça em seu peito. Quem sabe querendo, no frio de seus caminhos, a batida quente do coração dela. Era bom vê-los, como tantos outros, com os olhos em festa, ansiosos pelo brinquedo nas Celebrações de Natal da Pastoral.

Dia de São Mateus. Ao passar, Jesus viu um homem chamado Mateus, como narra o Evangelho (MT 9,9-13), sentado na coletoria de impostos e disse-lhe: "Segue-me!" Ele se levantou e seguiu-o. Na refeição que serviu a Jesus, vieram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se à mesa junto com Ele e seus discípulos. Os fariseus questionaram e Jesus disse: "Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Ide, pois aprender o que significa: 'Misericórdia eu quero, não sacrifícios'. De fato, não é justos que vim chamar, mas a pecadores".

Estavam próximos à maioridade, ao falecer Da. Mariazinha. Perdemo-nos deles.

Na manhã que o vi, acabara de rezar o Hino das Laudes: "São Mateus, filho de Alfeu, / Publicano, pecador, / Quando Deus o escolheu, / Seguiu Cristo, com ardor. / Ao seu telônio sentado, / Desprezado pelo povo, / Foi por Cristo transformado/ E tornou-se um homem novo. / Coração aberto, ardente, / Sempre atento à mão de Deus, / Foi recolhendo a semente/ Que Cristo trouxe dos Céus..."

O "veja o que me tornei" martela na minha cabeça. A mãe avisto de tempos em tempos, apressada, nas ruas, revestida de pó de asfalto, em busca do nada.

É muito doloroso para um(uma) filho(a), mesmo que bem cuidado(a), observar a mãe ou o pai sujo, perdidos nos trechos do submundo, sem limites na fissura das drogas... Ficam na esperança da reconstrução que nunca chega. Questionam-se qual seria o seu valor diante da preferência pela droga. Difícil compreenderem que a drogadição é uma doença crônica. Os filhos feridos, em um passo falso, podem repetir a mãe ou o pai.

Que fazer? Nós o perdemos de vista, após a morte da avó. Eu o perdi de vista, após me revelar quem era. Que fazer? Em princípio coloquei-o em minhas preces, com o desejo de que, em algum momento, possa lhe oferecer as sementes que Cristo trouxe do Céu.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista

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