Onde colocar a bagagem

08/09/2022 | Tempo de leitura: 3 min
Maria Cristina Castilho de Andrade

Partilho estas histórias, que chegam à minha vida, - sem identificar as pessoas logicamente -, para que se saiba que elas existem e podem gerar dores além das próprias. É preciso, penso eu, estender o coração e as mãos.

A menina aportou no centro cirúrgico com seus cabelos de ébano e, dentre desconhecidos, sentiu a superfície de seu pulsar materno. Não se importou, portanto, de vir à luz em meio a vozes diferentes. Trazia com ela sua bagagem de dons, a partir do sopro do Criador na fecundação, que cada bebê carrega. Na alta, foi levada para um lugar com ninho macio e quente, contudo com a ausência de quem conhecera durante os seus nove meses de transformação de sementinha em gente. Depositou ali o seu bornal.

Em seu desenvolvimento houve impactos, sem dúvida, a moléstia do crack que a mãe fumava, as noites com chuva e frio na rua, a violência no corpo da mãe, o presídio por alguns meses, porém permaneceram juntas.

As autoridades consideraram que a mãe não possuía estrutura para criá-la. Era a quinta filha. Sentiu-se de orgulho ferido. Como a consideravam incapaz? Deixou as ruas, voltou para casa da mãe que cuidava das quatro primeiras, lutou por um emprego e não deixava de visitá-la no abrigo. Conseguiu resgatar o pátrio poder. A bagagem da menina veio para a casa da avó. Por dois meses deixou claro, a quem a criticava, ser uma vitoriosa. Em seguida, voltou para a rua e o Juiz de Menores da Comarca passou a guarda à avó, que seria a última a quem lhe caberia assumir. Os pais eram diferentes. Dois apenas de compromisso de verdade. A pequenina, pela parecença, pensava que fosse filha de um alcoolista, mas difícil de saber, pois fora gerada em tempo de rua da mãe, que às vezes se abrigava em mocós ou em tubos para encanamento em rios.

A avó, com a ajuda da mais velha – mal havia entrado na adolescência – foi cuidando, do seu jeito e dentro de suas possibilidades.

Depois de um susto, com dívida na biqueira, a mãe foi para outra cidade onde, por oito anos, com ajuda de familiares, conseguiu se restabelecer. Com o moço que conhecera e fora morar, já limpa das drogas, teve um filho. O primeiro dele.

A menina começou a ter atitudes agressivas, por certas sequelas de problemas emocionais.

A mãe, que se tornou por oito anos de presença, decidiu levá-la para morar com o companheiro e o irmãozinho, considerando que faltava “pulso” para corrigir suas atitudes. A menina continuou agarrada à sua bagagem. Talvez fosse agora que pudessem costurar os rasgados de seu bornal e lhe permitir que desenvolvesse seus dons.

No ano passado, por angústias, voltou para a rua e o crack na região em que residia. Às vezes dá sinais e se acende a esperança de que a vida renasça. A menina e o menorzinho vieram para a casa da avó. O pai veio buscar o filho. A menina foi morar com uma das irmãs em outro Estado. Não deu certo. Sem tratamento, cresceram suas instabilidades e brutalidades.

Penso que prossegue agarrada ao seu bornal despedaçado, talvez se questionando onde seria de verdade o seu porto. Talvez nas ruas, como a mãe? Trecheira? Onde está um colo que possa minimizar suas dores?
Peçamos a Deus por ela. Dons com a impossibilidade de serem cultivados, escorrendo em feridas, geram instáveis na sociedade.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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