NOSSAS LETRAS

Nada é para sempre

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 4 min

Leucipo e Demócrito, mestre e aluno, foram dois importantes filósofos que antecederam Sócrates, cujo impacto extraordinário no pensamento ocidental persiste com a frase desafiadora: “Conhece-te a ti mesmo”. No século V a.C, estágio em que filosofia e ciência eram sinônimas, os pré-socráticos estavam especialmente preocupados em compreender a natureza do mundo de maneira racional, afastando explicações mitológicas.

Antecipando a tese de Heráclito, que iria levar para as ágoras do pensamento a ideia do fluir do tempo na metáfora do rio, Leucipo e Demócrito, parceiros nos mergulhos profundos, formularam uma doutrina para explicar a origem do universo. Ambos sustentaram ser toda matéria formada de partículas de tamanho ínfimo e formas variadas, que se agrupavam em combinações casuais e por processos mecânicos, em constantes desencaixes.

A teoria, embora considerada distante dos modernos modelos atômicos, teve importância histórica para a química, a geografia, a cosmologia e a própria filosofia, que passou a considerar a noção de impermanência essencial para compreender não só o universo como também a existência humana. É da autoria de Demócrito a frase: ‘O homem é um microcosmo’.

Coincidência ou sincronicidade, os pilares do atomismo de Demócrito estavam bem próximos do pensamento de monges que seguiam os ensinamentos do budismo surgido na Índia nesta mesma época com Sidarta Gautama e seu entendimento da existência como transitoriedade e transformação.

Inspirado nas ideias helênicas e na doutrina budista, no século XVI Luís de Camões, em soneto magistral que começa com o verso “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, depois de listar algumas metamorfoses físicas e psíquicas escreve no terceiro soneto que é de ouro: “E, afora este mudar-se cada dia, /outra mudança faz de mor espanto/ que não se muda já como soía.” Ler o poema do vate português é reencontrar o conceito de instabilidade registrado de forma lírica. Sendo tudo fugaz, dependemos enquanto humanos de causas externas e internas sobre as quais não exercemos na maioria das vezes influência decisiva. ‘Tudo muda o tempo todo no mundo’, cantou também em português outro grande nome da poesia, o brasileiro Lulu Santos.

Interessante é inferir que a consciência de que nada é perene não é apanágio apenas de filósofos e poetas. A sabedoria popular, que bebe nas fontes da experiência humana, traduz em observações curiosas e precisas a impossibilidade de manter tudo como está. Os franceses, por exemplo, têm um expressivo ditado para descrever o caráter dinâmico da realidade: “Tudo passa, tudo quebra, tudo cansa”, que na língua original ganha ainda mais força pela aliteração: “Tout passe, tout casse, tout lasse”.

Há dois aspectos, pelo menos, a considerar sobre a impermanência. O primeiro se refere ao fato de que ela pode nos ajudar a aceitar o sofrimento sem desespero: se tudo se move e é transitório, tudo passa, inclusive a dor. O segundo tem a ver com a dificuldade de encarar a realidade que não se estabiliza e não oferece conforto duradouro, algo que pesa muito para os de comportamento rígido. Mas como cantou o mesmo Lulu Santos ‘não adianta fingir ou mentir pra si mesmo.” Basta olhar o próprio corpo, da infância à velhice. O planeta, o clima, as marés, as construções urbanas. As estações do ano. Os afetos próprios e os alheios. Os laços familiares e as ligações de amizade. Tudo está em constante transformação. Até mesmo o que aparenta estabilidade, como um grande amor ou uma imponente montanha. “Só os diamantes são eternos”, afirmou Ian Fleming pela voz de James Bond.

Aceitar a mutabilidade e não opor resistência a ela nos permite viver de forma mais consciente, conferindo valor aos momentos bons e criando forças para enfrentar com dignidade os ruins. Se é fácil? Não; não é. Principalmente porque somos dominados, na sociedade contemporânea, por apegos, expectativas e desejo de controle tão altos que odiamos pensar que a felicidade enfim conquistada não possa durar.

Sobreviventes, sigamos enredados no inevitável fluxo do tempo, carregando às vezes pedaços do que já foi. Essencial é entender que o fim iminente de qualquer coisa torna essa coisa mais valiosa. Então, tenhamos apreço ao instante, que afinal é sempre o de celebração da vida, pois se é verdade que o tempo passa e leva tudo o que acreditamos possuir, também é certo que enquanto dura é o que temos.

Aprender a fluir com os momentos de mudança, de transição, sejam eles constituídos por alegrias, frustrações ou dores, nos ajuda a encontrar equilíbrio no viver. Reconhecer o caráter impermanente da existência é oportunidade para adentrar a jornada de autoconhecimento proposta por Sócrates. Conscientizar-se de que nada é para sempre é responder assertivamente à vida nas suas contínuas demandas por evolução, adaptação e reinvenção.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.  

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