NOSSAS LETRAS

Memórias do Aterradinho

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

Os saberes assumidos pela literatura são muitos, avisou Roland Barthes em uma de suas aulas no Collège de France, ministradas em 1968 e depois levadas para livro. Estendendo-se, ele explicará mais tarde: “Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário.” 

Essas ideias do pensador francês morto em 1980 me ocorreram ao ler o recém-lançado livro de Ibrahim Haddad, ‘O Aterradinho da Tia Lúcia’, onde aspectos históricos, geográficos, econômicos, psicológicos e sociais se alinham de forma literária em relatos que, fossem levados à tela, pertenceriam ao gênero documentário. Escrita em primeira pessoa, a obra de 114 páginas registra lembranças da infância, dos avós imigrantes, da família que constituíram, das sagas vividas por parentes e conhecidos que saíram da Síria e do Líbano no começo do século XIX e vieram dar com os costados no Brasil. Ao concretizar seu projeto literário, Haddad traz à tona histórias únicas de uma específica comunidade de imigrantes em contato com locais.

Os fragmentos de memória formam expressivo tapete de retalhos onde fatos resgatados carregam afetos profundos. O leitor pode caminhar por esse tecido colorido e trilhar com prazer o lugarejo perfumado pelos afetos. Isso já se percebe nas primeiras linhas da Apresentação que o autor narrador faz de seu livro: ‘Desde a idade que me permitia escrever um romance, por volta de 1957 a 1987, idade entre 23 e 53 anos, eu sentia o desejo de fazê-lo protagonizado pela Tia Lúcia, símbolo de certo recanto de Minas Gerais, de nome Aterradinho.’

Para leitores de outras plagas o topônimo pode parecer apenas curioso e afetivo na sua flexão de grau. Mas é provável que muitos leitores de Franca, tão próxima da divisa com Minas Gerais, conheçam de fato o Aterradinho real ou dele tenham ouvido falar. Distrito de Ibiraci, município mineiro de raízes antigas cujo nome significa em tupi ‘a mãe da árvore’, o Aterradinho teve vida movimentada em seus primórdios. Segundo a tradição, os primeiros moradores seriam foragidos da justiça portuguesa que lhes cobrava o dízimo do ouro lavrado e dos diamantes garimpados nas zonas de mineração como Canoas e outras das margens do Ribeirão do Ouro. Já em princípios do século XVIII, formavam-se ao redor desse núcleo original algumas fazendas onde trabalhavam em regime de escravidão muitos africanos. Nesse período, fazendeiros de alguma posse, respondendo aos anseios da igreja católica, resolveram erigir uma igreja sob a invocação de Nossa Senhora das Dores do Aterrado. O templo parece ter vinculado os moradores ao lugar. Foi a esse espaço perdido no mapa que chegaram, com o século XX, alguns árabes oriundos da Síria e do Líbano, em busca por melhores condições de vida. Logo de início conta o escritor, noventa anos confessos e memória prodigiosa:

‘(...) minhas lembranças saltitaram em minha mente desde a mais tenra idade, quando meus Avós maternos, sírios, e meu pai, libanês, tiveram um empório naquele diminuto lugar. Nascido em Franca-SP, com cerca de dois anos meus pais me levaram para lá, onde permanecemos pouco mais de três anos. Esse foi o tempo suficiente para que tantos fatos interessantes se acumulassem na minha memória, sem perder-se quase nada; somaram-se àqueles algumas informações fidedignas sobre mais alguns fatos da época, por mim desconhecidos.”

Os relatos que mostram libaneses, sírios e brasileiros convivendo em harmonia no precário interior mineiro nos instigam a pensar nas motivações que orientaram a escolha do novo lugar para viver.  Historiadores registram que árabes emigraram, basicamente, por razões religiosas e motivos econômicos. No Império Otomano de fé islâmica, as comunidades cristãs foram perseguidas e estigmatizadas. Por outro lado, o sistema de pequenos lotes aráveis começou a erodir a ponto de não mais suprir o sustento de novas famílias. Diante de tais desafios, à população pobre restava apenas a busca, em outras terras, das condições de sobrevivência.

Consta de dados históricos que o imperador Pedro II, em viagem diplomática ao Oriente Médio em 1884, tendo se entusiasmado pela cultura local e cordialidade do povo árabe, acenou com a possibilidade de acolhimento aos interessados em viver num país vasto e de terra férteis. Consta que por meio dele a primeira leva de imigrantes árabes chegou ao Brasil um ano depois. Proclamada a República e até 1933, entraram no país novos grupos, somando no total cinco mil pessoas. Disso se depreende que os árabes que movimentam a história contada por Ibrahim Haddad estavam entre os primeiros a se estabelecerem no País. Com forte vocação para o comércio, sírios e libaneses (confundidos com turcos pelos brasileiros, equívoco explicado pelo Autor) tornaram-se mascates ou donos de pequenos estabelecimentos, como os pais do escritor e outros personagens do livro. 

Se mesmo para quem viaja hoje em voos regulares o Oriente Médio continua distante, pois mais de dezessete horas em velocidade de cruzeiro separam São Paulo de Beirute e Damasco, imagine-se a dificuldade de deslocamento dos viajantes daquela época transitando em navios e carros de boi durante semanas e até meses para chegar ao mundo novo. Mas- e aí surge nova pergunta- por que especificamente o Aterradinho?

Não temos respostas objetivas para isso no livro em questão. A explicação que o autor nos oferece pertence ao mundo da poesia e da filosofia. É traduzida pela expressão Maktub, que em árabe significa ‘estava escrito’. Foi o destino que encaminhou aqueles vizinhos árabes, que mal se conheciam em sua terra natal, para o Aterradinho brasileiro onde viveram um tempo que lhes possibilitou interagir com a cultura local, se ligarem aos brasileiros com quem fizeram trocas. Nessas relações entre diferentes falaram alto os afetos, o respeito, a consideração e a ética.

Aliás, é nesse contexto de trocas saudáveis que o autor insere a Tia Lúcia do título, assim descrita no terceiro capítulo: ‘Tia Lúcia era o símbolo do lugar, negra, gordinha, séria e alegre ao mesmo tempo; usava saia comprida e rodada, foi mãe de muitas filhas simpáticas e educadas, devotadas ao trabalho e pessoas de absoluta confiança. Sua casinha ficava logo abaixo da igreja de Nossa Senhora da Abadia, era simples, porém ornamentada de flores vivas, parecia um cartão postal’. Tia Lúcia poderia ser o fio condutor de uma narrativa, caso sua presença nas páginas fosse mais constante. Mesmo assim, a devoção do autor à sua pessoa a levou para a capa do livro. Na contracapa, outra casa, pertencente à figura feminina que se alinha à anterior em suas qualidades morais: Dona Tamine, a avó do autor.

Ao lado dos nomes árabes de familiares, o narrador faz referência, do início ao fim, a dezenas de outros que direta ou indiretamente ligaram-se ao antigo Aterradinho, como Issa, Agia, Issa Filho, Latif, Azize, Salma, Calixto, Anice, Abrão, Nadimo, Nadima, Rhamsa, Warriba e muitos outros. No quinto capítulo, sob título ‘A topografia do Aterradinho’, ele registra: ‘Voltando no tempo, do grupo de comerciantes árabes, o Sr. Calixto, compadre de meu pai e genitor da Warriba, foi dos primeiros a deixar o Aterradinho’.

Se houve uma diáspora incrível que trouxe ao interior mineiro dezenas de sírios e libaneses oriundos de longínquas aldeias estrangeiras, anos depois aconteceu outra diáspora que os levou a Franca, à capital paulista e a outras regiões brasileiras. Mas da memória afetiva do autor as pessoas não se despediram, não romperam vínculos, elas permaneceram. E mostram agora pela via da literatura as dificuldades enfrentadas para refazer suas vidas num país que as acolheu e lhes conferiu condições de estabilidade e crescimento.

Dúzias de descendentes desses árabes e sírios descritos pelo narrador e hoje residentes em Franca e alhures, ao ler o livro vão se sentir certamente mais uma vez orgulhosos de seus ascendentes, homens e mulheres cuja coragem inabalável inspira não só os que a eles se ligam pelo sangue, mas todos os que têm na ética do trabalho honesto e contínuo um valor dos mais nobres.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

 

Comentários

1 Comentários

  • José Maurício 18 horas atrás
    Meu avô teve uma farmácia no Aterradinho .Aissa Sad. Casado com Geronima Salomão. Minha mãe nasceu lá. Dona Benita Bachur. Casada com o Sr Assumeni. Onde compro o livro. Há o professor Ibraim me deu aula de Filosofia na Unesp. Saudaçôes a todos.