Dia 4 de novembro de 2003 morria Rachel de Queiroz, a grande romancista do Nordeste, com seus gloriosos 92 anos. Eu tinha nove anos quando mudamos para a cidade. Lembro-me de que minha mãe me dava um cruzeiro para comprar um Cruzeiro (a velha moeda e a velha revista daquela época). Na "Última Página" do Cruzeiro vinha uma crônica de Rachel de Queiroz. A minha mãe me ensinou a pronunciar aquele ch do nome dela como qu - Raquel, que eu começara pronunciando errado. (Sim, a pronúncia inglesa é diferente.) Interessante como a minha mãe, mulher da roça - o lugar onde morávamos antes nem luz elétrica tinha -, sabia quem era Rachel de Queiroz. Não sei quanto a entendia, mas acompanhava, com admiração.
Depois li O Quinze, gostei muito mais de João Miguel, embora admirasse demais a sabedoria-compaixão daquela mocinha que vivia tão de perto a miséria dos sertanejos, e por fim, já no fim da vida de dona Rachel, o apaixonante Memorial de Maria Moura. Lia de vez em quando uma crônica. Dona Rachel me acompanhou a vida inteira. Em 1991 eu a encontrei na V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Passamos uma semana no mesmo hotel, tomávamos o café da manhã, almoçávamos e jantávamos juntos. Passávamos o dia no Centro de Convenções Rebouças, em palestras intermináveis sobre literatura. Não apenas nós dois, naturalmente, mas dezenas e dezenas de escritores do Brasil inteiro. Mas estávamos juntos, eu vivia a glória literária - estar ali convivendo com todos aqueles escritores, e principalmente com dona Rachel de Queiroz.
Era admirável como à noite, que varávamos numa conversa descompromissada de amigos, ela, bem mais velha do que a maioria ali, tinha disposição para ir a um teatro ou a um outro programa fora. Eu olhava a sua cara doce e pensava em minha mãe. Penso em minha mãe ainda hoje quando penso em dona Rachel de Queiroz. Tinham quase a mesma idade. Não eram parecidas - a minha mãe era bem mais gorda... Eram parecidas - a mesma doçura. Aquela doçura de mãe. E fez, com doçura, uma literatura combativa, para mudar o mundo, denunciar a exploração do homem pelo homem.
Reencontrei-me com dona Rachel em abril deste ano (2009), em Fortaleza. Um encontro frio, de gelar. Na Praça dos Leões, em frente à Igreja do Rosário, sentada num banco de madeira, dona Rachel envelhece de tristeza. Quem tinha tanta vida, como o bronze é triste! Pedi a uma menininha que conversasse com ela - a foto ficou linda. Eu conversei com ela, ensaiei abraçá-la - com vergonha. As folhas caíam no chão, o dia estava cinzento, tudo estava triste. Tentei beber da doçura do seu olhar, de mãe, mas os olhos de bronze não têm olhar doce. E eu fiquei mais triste ainda neste meu reencontro com dona Rachel.