OPINIÃO

Antonio Cícero foi morrer na Suíça

Por Roberto Magalhães |
| Tempo de leitura: 2 min
O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais

"Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer". Foi o que disse o poeta na carta de despedida. Vida danada esta que, assim do nada, tudo nos tira. Cícero disse mais: "Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa que eu mais gostava de fazer no mundo." Vida danada esta que, assim do nada, tirou do poeta a caneta; do filósofo, o pensamento; do letrista, a canção. Consciente do que fazia, acrescentou: "Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo".

Vida danada esta que, assim do nada, roubou-nos uma parte da arte e nos despoetizou o viver. Mais danada ainda a vida é quando da memória apaga a história que nela se escreveu. É assim gotejando que o tempo cumpre sua sina assassina de tudo nos tirar. Tudo não, quando, apesar de tudo, fica a vontade de dançar. Ainda que apagadas as luzes, empilhadas as cadeiras, nenhuma orquestra no palco e vazio o salão, dancemos. Dancemos enquanto música houver. Esse o problema. Na alma de Antonio Cícero não havia mais música, a vida se lhe tornara insuportável. Era poeta, filósofo, ensaísta, letrista de grandes sucessos de Marina Lima, sua irmã e, apesar de ser um imortal da Academia Brasileira de Letras, morreu.

Morreu em morte assistida na Suíça, onde a eutanásia é legal. Ele era tudo isso e agora não é mais nada, ao menos no pensamento de quem se confessava ateu. Em "Guardar", seu mais celebrado poema, ele diz: "por isso melhor se guarda o voo de um pássaro do que pássaros sem voos, por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: para guardá-lo." Sem asas para voar, nada mais tendo a guardar, nada mais a escrever, o pássaro poeta não viu mais razão para viver. Em "Valeu", poema de apenas dois versos, escreveu: "Vida, valeu. Não te repetirei jamais." No final da sua carta, o último verso de amor: "Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços." Morreu.

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