OPINIÃO

As Olimpíadas podem ser uma práxis transformadora?

Por Francisco Estefogo | Taubaté
| Tempo de leitura: 8 min


Os Jogos Olímpicos de Paris, ao reunir atletas de mais de 200 países e, portanto, de diferentes culturas, etnias e origens sociais, representam, a princípio, a epifania da multidiversidade e dos limites humanos, além de ser uma oportunidade ímpar para refletirmos sobre o papel dos esportes atinente às mazelas sociais da contemporaneidade, principalmente, relacionadas às desigualdades sociais, às guerras, ao preconceito, à intolerância, ao fundamentalismo e às esquálidas condições do vilipendiado meio ambiente. Similarmente, esse encontro plurilíngue tem o potencial de ser um espelho para a sociedade, ao mostrar que a cooperação, a solidariedade, a empatia e o respeito mútuo, pilares da democracia, são possíveis e desejáveis, independentemente do espectro político (a propósito, recentemente, muitos se identificam como "de esquerda" ou "de direita" sem entender de fato suas origens e significados históricos, simplificando a política e ignorando sua complexidade). Outrossim, as Olimpíadas oportunizam espaços para discutir e refletir sobre questões sociais, políticas e ambientais, no que se refere ao nosso engajamento na batalha contra as discrepâncias, as injustiças e as funestas mudanças climáticas, maiormente, nos dias de hoje quando o planeta derrete em chamas.

Ao destacar histórias de inclusão e igualdade, a prática esportiva nesse âmbito global pode suscitar o questionamento sobre nossas próprias atitudes para prospectar um cenário social mais inclusivo, justo e equilibrado. Mais do que uma competição atlética, o evento é o encontro planetário que celebra os contrastes culturais e individuais, o que, a rigor, poderia promover a igualdade e a benquerença mútua, consolidando ideais democráticos. O esporte, como uma forma de práxis, ou seja, uma prática consciente e transformadora, pode ser compreendido, então, como um instrumento de mudanças da realidade, ou, no mínimo, de limar as arestas da implicância, da discriminação, do desnível social e do apocalíptico desmantelamento do ecossistema.

A considerar a prática de esportes uma atividade humana, de acordo com Marx (1818-1883), filósofo alemão, trata-se, assim sendo, de uma possibilidade de transformar a existencialidade em conformidade com princípios da justiça e da equidade. Mais particularmente, do ponto de vista marxista, o fazer esportivo, em particular da magnitude dos Jogos Olímpicos, pode ser entendido tanto como uma ferramenta de alienação, se unicamente explorada pelo viés do voraz e onipresente capitalismo, quanto como um modo de resistência e de reformulações, com base na colaboração e na vitalidade do pujante trabalho coletivo.

Em relação ao aspecto alienante, na seara do atraente capital, além de uma atividade física ou recreativa, o esporte é, pela ótica marxista, um produto altamente comercial. As grandes ligas esportivas internacionais, clubes e competições, por exemplo, são empresas que visam ao lucro e são normalmente controladas por interesses corporativos e financeiros. Esse paradigma cria invólucros onde, na verdade, o esporte é usado como um artefato para gerar receitas e manter a ordem social, em vez de servir ao bem-estar coletivo e à verdadeira expressão humana, concernente à criação e à ressignificação. No mais, a prática esportiva pode funcionar como uma forma de distração, ao desviar a nossa atenção dos dilemas sociais e políticas mais amplas e espinhosas. Reuniões esportivas de grande escala, como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, podem capturar a atenção pública e, então, fomentar um pseudo senso de identidade nacional, de patriotismo ou de vida comunitária. Em paralelo, esse movimento sorrateiro manipulador têm a propensão de obscurecer ou desviar o foco das injustiças sociais, políticas e econômicas. Esse expediente capcioso tem chances de viabilizar aspectos da alienação política, subterfúgio pelo qual nos concentramos mais nas competições como entretenimento do que na luta por mudanças sociais relevantes.


Ademais, o esporte, especialmente no seu formato profissional e comercial, pode reforçar normas e convicções que são benéficos apenas para a manutenção do status quo. A exaltação de ideais como a rivalidade, a competitividade e a conformidade podem legitimar e perpetuar alicerces neoliberais existentes. Além disso, ao propagar um ideal de sucesso baseado no desempenho individual, afora alargar o distanciamento da coletividade, o esporte pode reforçar a ideia da famigerada meritocracia, redirecionando os holofotes das desproporções formativas e das díspares condições socioeconômicas que afetam milhares vidas fora do campo de jogo. De mais a mais, o acesso ao esporte de alta qualidade e a oportunidade de se destacar em operações esportivas profissionais estão comumente vinculadas a temas alusivos à classe social, posto que a elite econômica, majoritariamente branca, vale-se das infraestruturas e oportunidades de ponta, enquanto as classes trabalhadoras e marginalizadas habitualmente enfrentam barreiras expressivas. Por esse prisma mercantil, na contramão do que usualmente se acredita, o esporte propicia analogamente possiblidades de espelhar e até acentuar as imparidades existentes na e social.

No avesso da perspectiva de completa desconexão crítica com o tecido social, como se a vida fosse meramente uma dádiva decorrente dos fenômenos telúricos, pelo ângulo marxista, o esporte oferece condições de ser um ambiente para a formação de identidades coletivas e para a construção da solidariedade entre grupos estigmatizados e oprimidos. Quando as comunidades recorrem ao esporte como uma estratégia de se unir e expressar suas reivindicações, as atividades esportivas podem ser ambiências de protestos sociais, culturais e políticas. Movimentos esportivos que desafiam normas raciais ou de gênero, como a tenacidade dos desportistas negros durante o movimento dos Direitos Civis, nos Estados Unidos, ou o apoio a participantes trans e não-binários, além da presença de mais mulheres no esporte são algumas possibilidades de demandas. Em acréscimo, a visibilidade pública dos torneios e dos participantes permite que o esporte funcione como arcabouço para advogar a promoção de causas sociais. Atletas que se servem de suas posições para trazer à baila meandros interpessoais, como alguns já o fizeram no que concerne à comunidade LGBTQIAP+, ou para se engajar em campanhas políticas, podem se fundamentar no esporte como um modus operandi com a finalidade de incitar apoio e gerar discussões sobre temas importantes, como direitos humanos e princípios democráticos.

Uma das mobilizações de grande estridência durante as Olimpíadas passadas foi o boicote decretado pelos EUA em resposta à invasão soviética no Afeganistão em 1979. Na esteira estadunidense, 65 países não participaram do evento em 1980. Também houve o de 1984, quando a antiga União Soviética se recusou a participar do festejo esportivo como uma retaliação ao repúdio liderado pelo rico país americano e outras nações ocidentais aos acontecimentos olímpicos anteriores. À época, a justificativa oficial do território russo, como é conhecido atualmente, para a represália, foi a preocupação com a segurança de seus atletas, alegando que havia um sentimento antissoviético prevalente na terra do Tio Sam. Adicionalmente, competidores e equipes podem se inspirar nos esportes como uma forma de desafiar o status quo e contestar as hegemônicas plataformas de poder. Paritariamente, os esportistas podem protestar contra injustiças sociais e políticas durante competições, como aconteceu nas Olimpíadas de 1968, no México. Tommie Smith e John Carlos ergueram os punhos fechados para simbolizar o embate dos Panteras Negras, uma organização que confrontava a desigualdade racial e apoiava a resistência armada contra a opressão. Esses atos de oposição e clamor, à primeira vista, visam chamar a atenção para debates acerca da assimetria social e dominação, além de sensibilizar e mobilizar o público para prospecções de mudanças na sociedade.

Afora essas condutas, em alguns contextos, o esporte abre portas para ser praticado de maneira a facilitar a autonomia e o controle coletivo sobre as atividades físicas e os recursos associados. Essa visão pode incluir a criação de ligas esportivas independentes, clubes e associações que operam fora da toada do capitalismo corporativo. A título de exemplo, clubes de esporte comunitários e cooperativas poderiam oportunizar alternativas diante do sistema esportivo comercializado, ao promover uma abordagem mais equitativa, inclusiva e democrática. Semelhantemente, o esporte dispõe de condições de ser um mecanismo de educação e formação política, já que tem potencial para viabilizar o desenvolvimento do pensamento crítico, além de facultar diretrizes de cooperação e justiça. Em contextos educativos e associativos, o esporte oferece artifícios para pautar possíveis indagações dos sistemas de autoridades regentes e desenvolver a consciência crítica acerca das suas condições sociais e políticas. Com a mesma importância, os esportes são possíveis janelas para a contestação e a subversão das normas sociais estabelecidas. Juntamente com outras providências, desportistas e associações podem desafiar padrões normativos de gênero, classe e etnicidade, bem

como engendrar novas concepções plurais de possibilidades de estar no mundo. A maneira pela qual o esporte é praticado e representado instaura condições, destarte, de refletir e fomentar atos para resistir à supremacia da branquitude cultural e social dominante.

Apreende-se, assim, que em que pesem os Jogos Olímpicos como uma manifestação do capitalismo global e, consequentemente, uma cortina de fumaça da igualdade e unidade, também possuem vigor revolucionário quando compreendidos como fórum para questionar, subverter e transformar as soberanas estruturas existentes. As Olimpíadas podem, então, ser uma forma de práxis transformadora na qual a resistência e a pujança do coletivo se tornam notórias e, possivelmente, potências na defesa por uma sociedade mais justa e equitativa. A emblemática máxima de Marx, ou seja, “os trabalhadores não têm nada a perder a não ser suas correntes. Eles têm um mundo a ganhar” é um convite para a coletividade lançar mão de sua robusta octanagem e proeminente visibilidade, em especial, durante a mundial vitrine dos Jogos Olímpicos, com vistas à construção de um universo social um pouco mais equânime, mesmo que sejam doses ínfimas.

* Membro da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Unitau

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