OPINIÃO

E aqui estamos nós

Por Luiz Malavolta | 24/02/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Este mês de fevereiro marca o início da imigração italiana para o Brasil há 150 anos. No dia 17/02/1874 chegava a Vitória, Espírito Santo, o navio La Sofia com os primeiros 388 imigrantes.

Números oficiais indicam que sete milhões de paisanos vieram para esta terra para trabalhar.

Vieram substituir a mão de obra escrava, já liberta, mas a vida era tão ruim para esses italianos que muitos se tornaram vítimas de todo tipo de exploração praticada pelos fazendeiros cafeicultores.

Meus avós maternos, imigrantes italianos, já falecidos, me contaram que muitos fazendeiros não pagavam os salários, pois vinculavam o acerto do ordenado a dívidas contraídas pelas famílias nos armazéns que mantinham dentro das colônias de lavradores e que forneciam alimentos.

Era uma prática comum para evitar deserções das turmas. Além disso, quem desse mole no cafezal durante o trabalho - cuja jornada chegava a 12 horas diárias - levava chicotadas. Existem muitos relatos de que famílias de imigrantes acabavam se conformando por trocar o trabalho por comida e as crianças também tinham de lavrar na roça para pagar as dívidas com os patrões.

O legado da herança italiana é muito grande no país, da língua a costumes. Há dezenas de palavras que se incorporaram ao dicionário de português do Brasil. Algumas tiveram novo significado aqui.

Pizza, capuchino, carnaval, camarim, mortadela, pastel, palhaço, poltrona, são algumas delas muito comuns para a gente. Tem também Baderna, assim em maiúsculo. Era o sobrenome da italiana Marieta Baderna, bailarina que se envolveu com grupos anarquistas, no Rio. Presa e fichada muitas vezes, se tornou verbete dos nossos dicionários, não como sobrenome, mas como sinônimo de confusão e grafada em letra minúscula.

O escritor modernista Alcantara Machado, que viveu no auge da imigração italiana e morreu muito jovem, escreveu um livro clássico - Brás, Bexiga e Barra Funda-, que deveria ser indicado como leitura imprescindível nas escolas públicas e particulares de São Paulo. Na obra, Alcântara Machado registra o modo de falar da época misturando o português com o italiano.

Na capital, a influência italiana está em todos os lugares, da comida à arquitetura. Nas antigas fazendas do interior paulista, as colônias das famílias de imigrantes reproduzem as casinhas coladas umas às outras, com porta para a rua, igual ao costume do sul da Itália. Além de camponeses, vieram para cá muitos artistas, arquitetos e gente especializada em construção civil.

Em São Paulo, essa gente legou uma arquitetura primorosa, feita com muito estilo, arte e suor. No centro da capital há prédios mais que centenários que compõem um cenário único, que em muito se assemelha ao que existe em Roma, Nápoles, Verona, Veneza. O Teatro Municipal e o Museu do Ipiranga são duas das muitas obras de arquitetos italianos que vieram para o Brasil.

O projeto do Municipal é de Cláudio Rossi e Domiziano Rossi, que não eram parentes, apesar do sobrenome e trabalhavam para Ramos de Azevedo.

Já o projeto do Museu, que fica nas colinas do Ipiranga, é de Tommaso Gaudenzio Bezzi e Luigi Pucci, inspirado nas construções renascentistas.

Em 1998, na Globo, fiz uma produção para o Jornal Nacional tratando da forte influência italiana no Brasil. Na época apurei que se comia mais pizza na cidade de São Paulo do que na Itália inteira: eram 13 milhões por mês vendidas só na capital paulista. Também apurei que a lista de assinantes de telefones fixos da capital paulista possuía mais sobrenomes de origem italiana que a lista telefônica de Roma. Num dos filmes de "O Poderoso Chefão" há uma cena antológica. Ela retrata a chegada do menino Vito Andolini aos Estados Unidos, após desembarcar no Porto de Nova York. Essa cena é crucial para entender a origem do personagem e sua jornada na América. O oficial de imigração pergunta o nome ao garoto, mas ele não entende inglês e apenas olha assustado.

O oficial, sem paciência, escreve "Vito Corleone" em seu registro, baseando-se no nome da cidade natal do garoto. A comuna de Corleone fica na Sicília. Assim surgiu Dom Corleone, o poderoso chefão fictício da máfia americana. Estive há poucos anos no prédio que recebia no passado os imigrantes em Nova York, onde essa cena do filme foi gravada. O prédio lembra o edifício da Hospedaria dos Imigrantes, no bairro da Mooca, em São Paulo. Ele fica na Ilha Ellis, vizinha à ilha da Estátua da Liberdade. Como aqui, lá o prédio virou o Museu Nacional da Imigração. Faz parte do Monumento Nacional da Estátua da Liberdade.

Na Segunda Guerra, o presidente Getúlio Vargas mandou confinar os migrantes italianos, japoneses e alemães em campos de concentração por serem considerados inimigos. Em 1942, cerca de 3.000 foram recolhidos em dez campos de concentração criados em sete Estados brasileiros (PA, PE, RJ, MG, SP, SC e RS). Foi uma fase muito difícil para esses estrangeiros.

Antes disso, em 1926, quando um punhado de oriundi já havia se estabelecido nestas terras, o Conde Francesco Matarazzo - ele próprio um imigrante que aqui enriqueceu vendendo banha de porco - foi convidado à posse do presidente Washington Luís. Chamado para discursar, encerrou sua preleção com esta frase: "Esta é a pátria dos nossos descendentes".

E aqui estamos nós, enquanto "la nave và", isto é, a vida continua, independentemente das circunstâncias ou adversidades.

Receba as notícias mais relevantes de Bauru e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.