Desde que novembro começou os francanos vêm celebrando os 200 anos de Franca. E mais uma vez tornou-se inevitável, ao saudá-la, não recorrer aos atributos mais evidentes que a distinguiram, desde a gênese como pouso de viajantes, mera centena de moradores em 1779, até o bicentenário comemorado neste dia 28 pela população estimada hoje em quase 400 mil habitantes.
Mais uma vez foram resgatadas a Franca das Três Colinas, referência topográfica; a do Capim mimoso, que mais não há porém florescia em rosa nos outonos de antanho; a do clima ameno, pelo menos até aqui; a do céu azul-portinari no inverno e de crepúsculos magníficos no verão; a do ‘melhor café do mundo’, slogan onipresente por décadas; a do calçado masculino que a tornou icônica até no exterior; a dos diamantes em algum momento negociados na Praça Barão; a do basquete carregando o nome da cidade para todos os pontos cardeais. A Franca da Careta desaparecida, só vaga lembrança na ponte da Estação, e cujas águas tinham o condão de fixar nos rincões francanos quem delas bebesse. A Franca do Relógio do Sol, que ainda encanta as crianças que o descobrem junto à saga de Frei Germano (de Annecy). A Franca da Capelinha de Manuel Valim, que ao passar por espetacular restauro tornou-se neste ano um dos mais belos cartões postais da cidade, o seminário de Nossa Senhora Aparecida. A Franca das boas universidades, de músicos iluminados, de pintores renomados, de dezenas de jornais, de escritores talentosos na prosa e na poesia, de tantos artistas que um dia até a chamaram de “Atenas da Mogiana’. Também a Franca dos antigos tipos populares. A Franca do francanês, idioma delicioso que fica a meio caminho dos falares mineiro e paulista. A Franca da comida caipira e dos bolotas.
A Franca são muitas mas no constante refazimento que é o destino de todos os centros urbanos, com construções que se erguem umas sobre outras, há resíduos que ficam, como gemas na bateia. E, como escreveram Heidegger e Holderlin, ‘o que permanece os poetas o fundam’.
Um de nossos poetas, Alfredo Palermo, intelectual cujas qualidades são por demais conhecidas e admiradas por várias gerações, traduziu seu amor pela terra natal na letra do hino composto pelo maestro Waldemar Roberto e tornado oficial nos anos 70. Eis os versos, sempre entoados nas cerimônias do município:
‘Salve Franca, cidade querida,/Áurea gema do chão brasileiro,/Teu trabalho é uma luta renhida,/Sob a luz paternal do Cruzeiro/No sacrário de mil oficinas/Teu civismo é mais santo e mais puro/Labutando é que a todos ensinas/O roteiro de luz do futuro.//Juventude, memoremos/A bravura ancestral,/E a pureza/A beleza/Desta terra sem rival./Seresteiros, evoquemos/Um pretérito imortal/Pois na presente grandeza/Fulge a grata certeza/De um porvir sem igual.//És florão da grandeza paulista/Semeada em teu chão feiticeiro/Teu café em aleias se avista/Soberano em seu reino altaneiro/Salve Franca de tardes douradas,/Três Colinas amenas, ridentes:/Relembrando tuas glórias passadas/Outras glórias sonhamos presentes!’
A letra é um poema primoroso onde a cidade, distinguida em seus aspectos mais louváveis, destaca-se sobretudo pelos valores humanos da luta e da fé. Conferindo importância ao povo dedicado ao trabalho e convocando a juventude a honrar ‘a pureza e a beleza da terra”, o autor realça a importância da memória histórica, comemora a grandeza do presente e prevê um futuro brilhante para a cidade.
Quando o hino de Alfredo Palermo foi oficializado, outro poeta, Paulo Gimemes, devia ser criança de colo. Desde sempre vocacionado para a música e as letras, enquanto crescia seu olhar ia capturando lugares, cenários, personagens, mitos, acontecimentos relevantes por conta de sua força histórica, emocional, estética, anedótica e até filosófica. Um dia reuniu todas essas emoções de francano afetado pelas peculiaridades da terra natal e escreveu um poema, ‘Conjugando Franca’. Publicado inicialmente em revista do jornal Comércio da Franca em 2008, no aniversário da cidade, dois anos depois foi incluído na antologia ‘Poemas para cantar, Músicas para ler’. Ao ganhar melodia de Afonsinho Nóbrega, alçou status de canção de louvor ao espaço urbano. Milhares de meninos e meninas a conhecem de cor porque ela chegou de forma avassaladora às escolas públicas e particulares mediada por professoras e professores de língua portuguesa.
Transcrevo-a abaixo:
“Nascer nas Três Colinas/ Crescer na Estação/ Brincar no ‘Siqueirinha’/ Estudar lá no Barão/ Aventurar no Bagres/ Brigar na Vila Tião/Rezar lá na Matriz/ Passear na Conceição// Cantar na Concha Acústica/ Correr do Pelotão/ Rir da Capotinha/ Temer o Capadão/ Sarar com Seo Anésio/ Massagear com Seo João/ Beber lá da Careta/ Sofrer lá no Lanchão// Eu vou vivendo assim/ Te conjugando até o fim/ Quando essa vida acabar/ E o verbo em mim se calar/ Vou pro Saudade descansar/ Capim mimoso/ de novo vou brotar// Bailar com o Laércio/ Vibrar no Pedrocão/ Nadar lá na Francana/ Almoçar lá no Barão/ Tomar no Pajé/ Curtindo o Grupão/ Ler as notícias do Comércio/ Assistir no Odeon// Casar na Capelinha/ Foto Jair recordação/ Amendoim do Jubileu/ Pescar no Cubatão/ Viajar de Cometa/ No Magazine à prestação/ Envelhecer no São Vicente/ Me aposentar lá na Barão// Eu vou vivendo assim...”
Antes do hino de Alfredo Palermo e da canção de Paulo Gimenes, outros dois poetas, também músicos, Agnelo Morato e Diogo Garcia, compuseram a valsa “Terra dos meus sonhos”, que exibe versos enriquecidos por sinestesias surpreendentes (‘Eis as Três Colinas/ na retina sem fim/ e a água da careta/ corre dentro de mim”); intertextualidade expressiva (‘Chorei de saudades’, ‘Adorando em segredo’, ‘Choro de violinos’- títulos de valsas francanas); metáforas inusitadas de grande beleza: ‘Tem o capim mimoso na visão/ e sua cor é o som de um violão’. A letra sustenta a narrativa de um francano distante que já idoso relembra com saudade e certa melancolia sua terra natal:
“Terra dos meus sonhos/ Igual outra não vi/ jamais te esquecerei/ Cidade onde nasci/ Essa dor que compunge minha alma/ É saudade que sinto de ti//Chorei de saudade/ Adorando em segredo, Choro de violinos/ e muitas valsas mais/ São boêmias serenatas/ dos saudosos tempos/ que não voltam mais// Agora no fim da existência/ Bem longe da mocidade/ Canto em teu louvor oh Franca/ Essa valsa de amor e saudade/ Da minha infância feliz/ Que passou tão ingênua a sonhar/ Por isso longe de ti/ ao recordar meu consolo é cantar// Eis as Três Colinas/ Na retina sem fim/ E a água da careta/ corre dentro de mim/ Tem o Capim Mimoso na visão/ E sua cor é o som do violão/ Bairro da Boa Vista/ E o alto da Estação/ E a Cidade Nova/ Cantam esperanças/ E tem ainda o luar/ que fica a inspirar essa infinda lembrança.”
Canção, valsa ou hino propriamente dito, as composições acima estão na categoria das odes, gênero conhecido desde os primórdios da história e uma das mais antigas formas assumidas pela poesia. Contrária à sátira, toda ode é um poema de exaltação. Sob esse aspecto, Franca possui três odes/hinos que celebram suas qualidades e registram suas singularidades.
O poema de Alfredo Palermo possui tons épicos; o de Morato e Garcia expressa sentimentos românticos; o de Paulo Gimenes agita-se com o ritmo da modernidade. Os três emergiram dos afetos genuínos dos autores em relação à cidade que os viu nascer, na qual se tornaram adultos, onde formaram famílias. Ainda que resgatando em seus versos os mesmos elementos identitários que perfilam Franca, os autores conferiram aos poemas a especificidade de seus olhares de indivíduos que cantando a aldeia cantam também o mundo. Seus olhos captaram diferentes formas de beleza e verdade contidas na paisagem urbana que é ao mesmo tempo una e plural.
Como Palermo, Gimenes, Morato e Garcia, cada um de nós traz dentro de si a sua Franca que é mais do que um espaço, é lugar de pertencimento.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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