Tenho a impressão que a maior parte das pessoas não sabe o que significa mito. Para essa maior parte, os mitos resumem-se a figuras messiânicas, com poder de atração, donas de atos e palavras que as colocam em destaque nestes tempos de mídias digitais.
Há diferentes definições para mito. Gosto dos pensamentos e estudos de Roland Barthes. Quando refiro-me a mito, estou no campo da linguagem. No fundo, todos estamos, mesmo aqueles que pensam em mitos como algo palpável e possível apenas a alguns, líderes ou figuras inspiradoras. Enganam-se. Mitos estão em todos os cantos.
Para Barthes, mito é uma fala, e carrega uma mensagem. Mito são sistemas complexos os quais Barthes, em seu ótimo “Mitologias”, chega a chamar de “metalinguagem”, “porque é uma segunda língua, na qual se fala da primeira”. Mito é, ao mesmo tempo, sentido e forma. E esta é uma questão interessante colocada pelo mesmo pensador: “a forma não suprime o sentido, apenas o empobrece, afasta-o, conservando-o à sua disposição”.
Sim, mitos preferem a forma. E a forma, ainda que presente, é vazia. Claro que a percepção das coisas depende da maneira como as lemos. O próprio Barthes concorda que há diferentes leituras a serem feitas sobre mitos. Cada pessoa pode recebê-los de formas distintas. Podemos produzir mitos com funções específicas; podemos consumir mitos destruindo sua significação ou os aceitando segundo o que parecem ser.
O mito é uma “linguagem roubada”, vive em excesso na nossa cultura e, por naturalizar e esvaziar as coisas de sentido, contrapõe-se ao fato histórico e à política como ciência. Daí uma questão curiosa nesses nossos tempos estranhos: se o mito opõe-se à verdadeira política, por que ainda chamamos homens públicos de mitos? Porque assim querem seus propagandistas, seus adoradores, a massa que consome a forma sem enxergar o que a mesma oculta. O mito é uma fala despolitizada e serve à ideologia burguesa com perfeição, revela-nos Barthes em um dos pontos mais interessantes e esclarecedores de seu livro.
O cinema, por ser uma arte de imagens, tem mitos em abundância. No recente “Elvis”, vemos em seu protagonista o mito da América forjada pelo espetáculo, pelos jogos e pelo bom moço levado à desgraça pelo explorador capitalista (não nego que tudo seja verdade; apenas analiso a maneira como o filme resume a história do famoso músico).
Em “Casablanca”, há o mito do americano como agente do equilíbrio em um mundo dividido, durante a Segunda Guerra Mundial. Seu heroi, imortalizado por Humphrey Bogart, por algum tempo passa-se por incorreto, desiludido, e no fim salva o líder da Resistência ao sacrificar seu grande amor. Ludibria alemães e aceita a amizade dos franceses.
A narrativa clássica americana, por ser pródiga em sínteses, é um terreno fértil para os mitos. E as cinebiografias alimentam-se dessas formas que, em muitos casos, dispensam um sentido profundo. “Elvis” é um bom exemplo recente. Não acredito que os mitos sejam sempre ruins. Creio, ao seguir os ensinamentos
do mestre Barthes, que é preciso vê-los como são.
RAFAEL AMARAL é crítico de cinema e jornalista
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