31 de dezembro de 2025
ARTIGO

Da “oikós” grega às cerzideiras da minha infância

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 3 min

Fala-se hoje, quase obsessivamente, na necessidade de reciclagem, como se se tratasse de uma grande novidade. Mas os nossos avós já sabiam muito bem o que é reciclagem e a praticavam por hábito, antes que a maldita “mentalidade do descartável” dominasse toda a cultura (ou falta de cultura) contemporânea. Apenas a designavam com outro nome: economia, palavra proveniente do grego “oikós” (lar, ambiente doméstico) e “nomeía” (norma, regra). Etimologicamente, economia quer dizer boa administração do lar.

Reciclar, ao pé da letra, significa renovar o ciclo, dando uma nova utilização a algo que já foi usado, e reaproveitando, com sabedoria e inventividade, coisas que aparentemente já não têm utilidade. Reciclar é, pois, uma forma excelente de fazer economia. Não se faz economia sem reciclar.

Antigamente, muita coisa era reciclada. Um lençol velho, por exemplo, remendava-se tanto quanto possível, até nas melhores famílias. Conta-se que quando José Bonifácio, o Patriarca da Independência, ficou doente e foi visitado por D. Pedro I, recebeu-o em seu quarto, coberto por lençóis com vários remendos de panos diferentes, e até gracejou com o imperador, sobre a “originalidade daqueles bordados”. Quando um lençol não mais tinha condições de ser usado, era habilmente transformado por nossas diligentes avós em lenços, ou em panos de prato.

Uma roupa, quando rasgada ou envelhecida, ainda servia para ser usada como pijama, ou como roupa própria para o trabalho mais pesado. Um paletó, depois de muito usado e já um tanto desbotado, era jeitosamente virado do avesso: um oficial de alfaiataria desfazia todas as suas costuras e refazia o paletó ao contrário; a face do tecido que tinha ficado oculta era, então, colocada do lado de fora, e a face já esmaecida por anos de uso ficava do lado de dentro. O resultado era um paletó - digamos assim, para usar uma expressão atual - seminovo! Um sapato velho, já inadequado para se usar na rua, ainda tinha uma longa sobrevida, como chinelo para ser usado no conforto e na intimidade da vida doméstica.

Meias eram habitualmente cerzidas com cuidado, e para isso até havia um instrumento adequado, geralmente de madeira, em forma de ovo, um pouco maior do que os habituais ovos de galinha. Eram colocados dentro da meia e, assim tornavam-se visíveis e eram facilmente consertados os furos. Ainda tenho em casa um desses “ovos de costurar meias”, muito práticos e funcionais. Hoje, ao menor furinho, joga-se fora a meia e se substitui por outra...

Quando uma peça de roupa de tecido de boa qualidade sofria um rasgo ou um esgarçamento, ou quando uma ponta de cigarro aceso tocava por acidente um paletó ou uma calça, produzindo uma queimadura localizada, apelava-se para uma profissional designada como cerzideira. Ela trabalhava com paciência, munida com uma poderosa lente de aumento. Sua função era realizar, no tecido, uma verdadeira operação cirúrgica, re-emendando cada fio rompido, de tal modo que a superfície, restaurada, ficasse perfeita. Na minha infância ainda eram frequentes essas pacientes profissionais, consertando calças, paletós ou vestidos finos. Seu trabalho era difícil e custava caro, de modo que somente se apelava a elas quando a peça de roupa atingida era de boa qualidade e se justificava a despesa da sua restauração por uma cerzideira.

Cascas de ovo, ossos de frango, pó de café usado, também não eram jogados fora sem mais. Pelo contrário, eram levados ao quintal e depositados junto a alguma planta, para fornecer cálcio e outros nutrientes à planta, alimentando assim seu ciclo vital. Cascas de abacaxi, bem limpas, eram cozidas com açúcar e deixadas fermentar, em garrafas com rolhas presas com arame fino, para não estourarem com a fermentação; obtinha-se em poucas semanas uma bebida espumante deliciosa, que lembrava vagamente o champanhe. Cascas de maçã serviam para a confecção de um excelente chá calmante, que se tomava à noite, antes de dormir.

Recordo bem do ritual quase sagrado de minha avó tomando, à noite, esse chazinho propiciatório de um bom sono.

Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.