05 de dezembro de 2025
EDITORIAL

Nossa mitologia: importância das lendas piracicabanas

Por Marcelo Batuíra Losso Pedroso |
| Tempo de leitura: 3 min

Acabo de ler (e reler) a coleção das lendas de Piracicaba e dos personagens, que se tornaram eles mesmo uma lenda. Trata-se do livro «Lendas e Personagens Folclóricos de Piracicaba », da escritora Ivana Negri, decana de nossa Academia de Letras. É um livro escrito e pensado para crianças, mas não se limita a elas. A autora, ao final de cada uma de suas seis narrativas, as transforma em quadras de poesia, bem ao modo e ao gosto do cordel nordestino, dando-nos um sabor literário único.

A mitologia não é um atributo exclusivo dos gregos, ela está presente em todos os povos do planeta. Nem todas as lendas tratam de temas tão amplos como a cosmogonia e existência de deuses, muitas focam no homem comum ou no sobrenatural. As lendas são os mitos que nos refletem, desde o tempo de nossos bisavós. Mas não são meras estórias com o objetivo de «fazer o boi dormir». Ao contrário, o propósito das lendas é nos despertar, nos tirar do lugar comum de nossas vidas.

Joseph Campbell, mitólogo e estudioso das religiões comparadas, apresentou em sua obra "O Herói de Mil Faces" (1949) a tese de que, apesar das diferenças culturais e históricas, os mitos de diferentes povos compartilham uma estrutura narrativa comum. Essa estrutura, chamada por ele de monomito ou caminho do herói, revela um padrão universal das histórias.

O "caminho do herói" descreve o percurso simbólico de um indivíduo que, diante de um chamado, deixa sua realidade comum e parte em busca de algo maior. Esse herói enfrenta provações, encontra aliados, cruza limiares entre mundos, experimenta derrotas e conquistas, até retornar transformado ao ponto de partida. A essência dessa tese é que as narrativas de heróis expressam, de forma metafórica, processos profundos da experiência humana, ligados ao crescimento, à maturidade e à realização existencial.

O que melhor representa essa nossa mitologia piracicabana é a comovente história de Nhô Lica. Na partida de sua « jornada », Nhô Lica [o herói] recebe um chamado para sair da vida comum. Esse « chamado » é feito de forma simbólica por um raio que caiu em sua cabeça, ou, em outra versão da história, uma mamangava (abelha solitária, grande e preta, pertencente ao gênero Xylocopa) que lhe entrou no ouvido, deixando-o louco. A partir daí, sua jornada se inicia e ele passa a recolher pedras e cacos de vidro coloridos pensando serem pedras preciosas, distribuindo a todos até sua morte. Ivana Negri nos conta, com ternura, a história desse homem-lenda que sabia transformar sua ilusão em mensagem de generosidade.

Ivana Negri dá um passo fundamental na recaptura dessa tradição oral única de Piracicaba, para que não caia no esquecimento. Há ainda a ser contada, a notável história do Seu Geraldo dos Defuntos, aquele homem sempre vestido de terno com um guarda chuvas pendurado na altura do cotovelo, ia a todos os enterros da cidade, mesmo sem conhecer os mortos. Dizia que conhecia os defuntos «depois que morreram», pedia às famílias a doação de roupas do defunto para quele pudesse usar e estar mais próximo da memória de cada um deles. Morava no Lar Betel e quando criança fez uma promessa à sua mãe de ira todos os velórios casos seus ataques (epiléticos?) parassem. Cumpriu sua promessa até o fim de seus dias. Há a figura inesquecível e terna de Madalena, a nossa travesti que desfilava pelas ruas da cidade, sempre com um lenço amarrado ao pescoço, espalhando seu bom humor a todos, troçando com os homens e cuidando dos mais desafortunados. Essas e tantas outras lendas escondidas entre nas nossas memórias quem sabe um dia poderão sair da pena dessa escritora.

Nossas lendas nos moldam, nossos heróis (verdadeiros ou míticos) ajudam a nos entender enquanto piracicabanos. São histórias para ser contadas, partilhadas, recontadas e decoradas até que retornem ao seu lugar de origem: a tradição oral. Vão muito além de estórias infantis, são pedaços partidos de nosso caleidoscópio mitológico.