"Os monstros existem, mas são poucos. O que torna o mundo perigoso é a multidão pronta a adorá-los"
Primo Levi, escritor italiano
Fui surpreendido, como muita gente, com a recente polêmica em torno do vídeo gravado pelo influenciador digital Felca. Ao longo de 50 minutos, ele faz denúncias graves sobre os riscos e perigos da “adultização” de menores nas redes sociais e alcançou, em menos de uma semana, impressionantes 20 milhões de espectadores.
Os desdobramentos quase imediatos, com a prisão de dois dos mencionados no tal vídeo, os também influenciadores Hytalo Santos, paraibano de 27 anos, e seu marido, o funkeiro MC Euro, e a rápida discussão de vários projetos sobre o tema no Congresso Nacional, foram igualmente impactantes.
Não que eu estivesse alheio ao tema, à sua gravidade e relevância, mas admito que nunca tinha ouvido falar de nenhum dos personagens. Felca, antes de descobrir de quem se tratava, era um ilustre desconhecido para mim. E Hytalo, o neo-presidiário, soaria apenas como alguém cujos pais tinham pouco apreço pela língua portuguesa e menos gosto ainda pela escolha de nomes próprios.
No vídeo-denúncia, Felca não se limita a expor um único personagem. Ele desfia, com paciência de cirurgião e contundência de inquisidor, casos emblemáticos da chamada “adultização” digital: adolescentes transformadas em produto de entretenimento barato, expostas em danças sensuais, reality shows improvisados e até situações íntimas, tudo embalado para consumo em massa.
Nomes como Kamylinha, Bel para Meninas e Caroliny Dreher surgem como exemplos de uma infância sequestrada pela lógica perversa das redes. Mais assustador, porém, é a engrenagem invisível, que Felca batiza de “Algoritmo P” e que, uma vez alimentado, entrega esse material em escala industrial pelas redes sociais para milhões de curiosos, cúmplices ou predadores.
Entre todos os citados, ninguém encarnou de forma tão grotesca esse espetáculo sombrio quanto Hytalo Santos. Aos 27 anos construiu um império digital de milhões de seguidores explorando o que chamava de suas “crias”, meninos e meninas expostos em vídeos de festas, coreografias insinuantes e encenações de “família” improvisada que serviam de prato cheio para pedófilos.
O que parecia brincadeira de internet escondia, na verdade, uma engrenagem de exploração. O verniz de sucesso desabou instantaneamente quando Hytalo e seu marido, o funkeiro MC Euro, foram presos em São Paulo sob acusação de exploração sexual de menores e tráfico humano, com direito a carros de luxo apreendidos e perfis bloqueados.
Mas o que realmente me desconcerta não é a figura patética do influenciador ou a sordidez de seus enredos. Monstros sempre existiram e continuarão a existir, em diferentes formas e épocas. O que me causa espanto, quase nojo, é a plateia. Milhões de pessoas que não só assistiam, mas aplaudiam, comentavam, compartilhavam e transformavam essa vitrine de horrores em sucesso de audiência, essa montanha de likes em milhões de reais. Uma massa de gente mórbida, que gosta de assistir crianças caminhando rumo ao abismo e ainda ajudam a empurrá-las desfiladeiro abaixo. E não estamos falando de pouca gente.
Antes de serem suspensos, os perfis de Hytalo Santos nas redes sociais somavam quase 27 milhões de seguidores. Sua conta no Instagram era acompanhada por inacreditáveis 17,6 milhões de pessoas. Outros 7 milhões o seguiam no Youtube e mais 2,5 milhões faziam o mesmo no TikTok.
É tanta gente que Hytalo Santos tinha mais seguidores do que as populações de países inteiros como nossos vizinhos Paraguai (7,5 milhões), Bolívia (12,5 milhões) e Uruguai (3,4 milhões) somados. Ou, ainda, de Suécia (10,7 milhões), Portugal (10,5 milhões) e Noruega (5,5 milhões) juntos.
Esse mundaréu de gente não é um exército longínquo, perdido nos confins da internet. São quase 27 milhões de brasileiros, perto de 10% da população do país. Estão sentados à mesa ao lado na empresa em que trabalhamos, na fila do mesmo restaurante em que almoçamos, no ônibus que tantos pegam para se deslocar... Mais grave ainda: estão nas salas de aula dos nossos filhos, dividindo cadernos, provas e recreios. O perigo não é remoto; é íntimo, doméstico, próximo demais para que possamos fingir que não existe.
Fico então imaginando o que leva alguém, uma vez exposto pelo algoritmo a esse tipo de conteúdo, a dar o passo seguinte: seguir, acompanhar, alimentar com likes e comentários essa excrecência digital. O que os move? O que os atrai? O que os impede de refletir, ainda que por um instante, sobre os atos que praticam e as consequências que produzem? Julgam que se trata apenas de ficção inofensiva? Ignoram, por conveniência, os riscos reais a que essas crianças estão submetidas? Não estão nem aí? Ou, mais perturbador, excitam-se e se divertem com isso?
Os números dessa plateia de monstros deixam evidente, mais do que nunca, a urgência de uma regulação efetiva das redes sociais. Não se trata de calar opiniões ou cercear a livre expressão, mas de impedir que crimes sejam travestidos de entretenimento e se multipliquem sob o manto da impunidade digital. A engrenagem algorítmica que empurra crianças para o abismo precisa ser responsabilizada, monitorada, contida.
Se a sociedade aceitou, ao longo da história, que rádios, televisões e jornais fossem submetidos a regras para proteger o interesse público, não faz o menor sentido que plataformas globais, com alcance muito maior e poder infinitamente mais destrutivo, sigam operando como se fossem territórios sem lei, “improcessáveis”, abrigo perfeito para todo tipo de aberração. É disso que se trata: proteger a infância, preservar a dignidade humana, impedir que a barbárie se normalize em nossos feeds.
Por mais incrível que possa parecer, talvez ainda surja quem diga que “regular é censurar”, que os vídeos eram “só para rir” e que tudo isso é “só internet” Pois é: “só internet” que arrasta milhões, alimenta criminosos e naturaliza o inominável.
Se esse é o palco, aplaudir é cumplicidade, compartilhar é coautoria e se divertir com isso é pura barbárie. O monstro pode estar preso, mas a plateia continua solta. Se não dá para transformar estes milhões de seguidores em gente com consciência, que pelo menos tenhamos algum recurso para impedir que sua loucura e sordidez sejam alimentadas às custas de nossa inação e da imagem de nossos filhos.
O basta deveria ter sido dado há tempos. Temos agora uma boa oportunidade. Que as palavras se convertam em ações. E que a chance não seja, uma vez mais, desperdiçada.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias. Este artigo é publicado simultaneamente em toda a rede Sampi, nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCNet), Campinas (Sampi Campinas), Franca (GCN), Jundiaí (JJ), Piracicaba (JP) e Vale do Paraíba (OVALE).