Franqueados da maior rede de chocolates do Brasil relatam dívidas, adoecimento e práticas abusivas: "Perdi tudo"
Para muitos empreendedores, a ideia de abrir uma franquia de uma marca consolidada parece ser o passaporte para a realização de um sonho. No caso da Cacau Show, maior rede de franquias de chocolates do país, essa promessa tem se transformado em angústia, dívidas impagáveis e graves impactos na saúde física e mental dos franqueados.
"Me prometeram um caminho de sucesso. Hoje, estou emocionalmente devastada", resume uma das ex-franqueadas, que preferiu não se identificar. Ela relata dívidas superiores a R$ 750 mil e crises de pânico recorrentes desde que entrou para a rede.
A jornada costuma seguir um padrão: o encantamento inicial, impulsionado por treinamentos motivacionais e promessas de alto retorno, dá lugar a uma rotina exaustiva, onde os custos se acumulam e as cobranças inesperadas chegam sem trégua.
Multas contratuais, aditamentos repentinos e alterações de preços de produtos vendidos pela franqueadora são apenas alguns dos obstáculos enfrentados. Para manterem as lojas abertas, muitos acabam utilizando bens pessoais como garantia — casas, carros, poupanças de uma vida inteira.
Irene Angelis, que chegou a comandar seis unidades da marca, fala em um ciclo vicioso: “Quanto mais franqueado quebra, mais taxas a empresa arrecada. É uma máquina de moer pessoas.” A ex-franqueada afirma ter perdido R$ 3 milhões, além de desenvolver síndrome do pânico e insuficiência cardíaca. “Eles lucram com o fracasso alheio”, desabafa.
Vários franqueados relataram à reportagem que evitam se manifestar publicamente por receio de represálias. Há casos em que, após apresentarem queixas ou tentarem renegociar dívidas, os lojistas passaram a receber produtos com baixa rotatividade ou próximos do vencimento, inviabilizando ainda mais o funcionamento do negócio.
Em uma decisão judicial recente, o juiz Julio Roberto dos Reis classificou a conduta da empresa como “revanchista” ao restringir o crédito de franqueados em litígio com a marca, o que, segundo ele, violaria direitos constitucionais.
Uma franqueada gaúcha que teve sua loja completamente destruída pelas enchentes de 2024 relatou o abandono. “A água chegou até o teto. Perdi tudo. E mesmo assim fui cobrada por cada chocolate perdido.”
Ela afirma que buscou apoio da franqueadora, mas foi surpreendida por ligações cobrando o motivo do fechamento da loja. “Nem mesmo os royalties ou taxas foram suspensos. Me trataram como se nada tivesse acontecido”, lamenta.
Diante da crise, em vez de suporte prático, os franqueados relatam receber mensagens motivacionais vazias. Uma empresária procurou ajuda da consultora da sua loja e ouviu que precisava “se benzer”.
“Eu estava desesperada, e tudo que recebi foi essa sugestão absurda. Fizeram parecer que o problema era comigo, quando muitos outros estavam na mesma situação.”
Essa mesma empresária conta que largou tudo para investir na franquia: “Trabalhei sem férias, sem feriado, sem descanso. Três anos depois, estou falida e emocionalmente arrasada.”
O impacto emocional é uma constante entre os relatos. Uma franqueada que ainda tenta vender sua loja descreve sua condição atual como a de uma “morta-viva”.
“Envolvi minha família inteira nesse sonho. Quando começou a dar errado, não quis desistir. Achei que o problema era comigo, que se me esforçasse mais, conseguiria.”
A dívida acumulada é de R$ 750 mil. “Hoje tenho vergonha de tudo. Não sei mais como sair disso.”
Ex-franqueados também falam em um ambiente semelhante a uma seita, com discursos religiosos e devocionais liderados pelo fundador e CEO da marca, Alê Costa. Questionamentos são desencorajados, e quem ousa contrariar a narrativa enfrenta punições veladas.
Um grupo de franqueados chegou a criar um perfil nas redes sociais chamado “Doce Amargura”, onde publicam relatos e alertas. A administradora da página, ainda vinculada à rede, usa pseudônimo por medo. Após ser identificada, recebeu uma visita pessoal do vice-presidente da empresa, Túlio Freitas, em sua loja no interior de São Paulo — a mais de 600 km da sede da franquia. Segundo ela, o executivo perguntou “o que seria necessário para que ela parasse”.
Procurada, a Cacau Show negou todas as acusações. Em nota, declarou:
“Não reconhecemos as alegações apresentadas pelo perfil Doce Amargura. Somos uma marca construída com base na confiança mútua, no respeito e na conexão genuína com nossos franqueados.”
A empresa afirma que as visitas do vice-presidente fazem parte das atribuições do cargo, com o objetivo de manter um relacionamento próximo com os lojistas.
“Não compactuamos com condutas que contrariem nossos valores. Seguimos firmes no propósito de tocar vidas, compartilhando momentos especiais.”