"Mais vergonhoso que a derrota é um soldado sem honra, pois mesmo a vitória, conquistada por mãos corruptas, é apenas uma máscara de vergonha"
Sun Tzu, general e filósofo chinês
Braga Netto está preso no Rio de Janeiro. Decisão determinada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, a pedido da Polícia Federal e com aval do procurador geral da República, Paulo Gonet, levou para a prisão um general de quatro estrelas do Exército (topo da carreira militar), ex-ministro chefe da Casa Civil e ex-candidato a vice-presidente da República na chapa encabeçada por Jair Bolsonaro. É a primeira vez na história do Brasil que um militar desta patente é encarcerado, ainda que preventivamente.
Como o destino por vezes é irônico, Braga Netto foi conduzido pelos agentes da PF para a Vila Militar na 1ª Divisão do Exército, já que membros das forças armadas não podem ser detidos em presídios comuns. Acontece que a Vila Militar é parte do complexo do Comando Militar do Leste, que foi chefiado pelo próprio Braga Netto entre 2016 e 2019. Sem nenhum exagero, pode-se afirmar que o general está absolutamente familiarizado com as instalações de onde não pode mais sair - pelo menos, por enquanto.
Desde que a prisão de Braga Netto foi consumada no início da manhã deste sábado, 14, veículos de comunicação não param de atualizar informações sobre novos detalhes da trama golpista que pretendia assassinar o presidente eleito, Lula, bem como fazer o mesmo com o vice, Geraldo Alckmin, e o próprio ministro do STF Alexandre de Moraes, impedindo a transição de governo. Segundo o planejado, as eleições seriam anuladas por “fraude”; um gabinete de crise, convocado; e uma nova disputa (sem Lula, que estaria morto) seria marcada. Nos delírios desta gente de farda, Bolsonaro acabaria então eleito.
Especificamente, são duas as razões principais que levam à prisão de Braga Netto. A primeira, novas revelações feitas pelo ex-ajudante-de-ordens de Bolsonaro, o tenente coronel Mauro Cid, que disse em depoimento que a reunião com os oficiais das forças especiais que tiveram a ideia do triplo assassinato aconteceu na casa de Braga Netto. E dele recebeu aval para execução.
Dias depois, o próprio Braga Netto entregou, numa sacola de vinho, R$ 100 mil em espécie a um dos coronéis das forças especiais para financiar o plano dos assassinatos. Mauro Cid disse que esta reunião aconteceu no Palácio do Alvorada ou no Planalto (ele disse que não se lembra exatamente onde), mas garantiu que testemunhou a cena. Além do próprio depoimento, há mensagens obtidas no celular de Mauro Cid que reforçam o que ele disse.
A segunda razão também tem a ver com Mauro Cid. Ele disse que depois que saiu da prisão, foi contatado, direta e indiretamente, via seu pai, também general, por Braga Netto, que buscava obter detalhes do que teria sido dito por ele na delação premiada. Foi uma tentativa, uma pressão, também, para evitar que Mauro Cid dissesse mais coisas, além de conseguir elementos para ajudá-lo a confundir e embaralhar as investigações. Há ainda um pen drive, pertencente ao ex-assessor de Braga Netto, Antônio Pelegrino, e apreendido na sede do PL, nas salas que ambos ocupavam. No dispositivo, há inúmeros documentos detalhando as estratégias dos golpistas para desestabilizar o sistema democrático, desacreditar as urnas eletrônicas, planos para o pós-golpe e por aí vai...
Recorde-se que, além disso tudo, os ex-comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Jr, já confirmaram em depoimentos à Justiça que participaram de reuniões com o próprio então presidente Bolsonaro em que foi discutida a minuta de um golpe de Estado, que só não avançou por conta da resistência de um grupo de altos oficiais. O próprio Freire Gomes teria ameaçado prender Bolsonaro se ele persistisse naquele caminho.
Se tudo é tão óbvio, se sobram provas materiais, se os fatos estão mais do que claros, se os próprios personagens confirmam o que houve, se milhares de brasileiros acamparam na frente dos quartéis verbalizando estas mesmas ideias espúrias, por que quase metade do Brasil segue defendendo Jair Bolsonaro? Por qual razão, mesmo diante do óbvio, dito, repetido e comprovado, tanta gente ainda minimiza, relativiza ou simplesmente nega o que houve?
Basicamente, porque o problema não são os fatos, mas suas percepções. Tem mais a ver com neurociência e psicologia do que com política e informação. Não é que as pessoas não saibam o que houve e, nem mesmo, que não acreditem no que estão vendo. No fundo, a questão central para parte significativa dos brasileiros é que toda esta aberração não apenas era justificável como, também, necessária para corrigir uma distorção anterior (a “absolvição” e posterior eleição de Lula). Assim, imaginam, num sistema “apodrecido”, no qual um presidente considerado ladrão conseguiu se safar e ser eleito, só mesmo as Forças Armadas, usando atribuições que, acreditam, fazem parte da Constituição, é que poderiam resolver tudo – até, matando, em nome do “bem maior”. Quem pensa assim enxerga tudo invertido. E não há fato que possa surgir capaz de reverter esta percepção.
Não inventei nada disso. Tais comportamentos estão bem descritos na neurociência, especialmente com relação ao nosso “comportamento tribal”. Gostamos e nos sentimos confortáveis como parte de um grupo, qualquer que seja ele.
Também existe a “polarização emocional”. Sentimentos como medo, raiva e ressentimento dificultam o processamento de argumentos racionais. É como a criança que sofre ao entrar num quarto escuro. Não adiante dizer que nada há de perigoso lá dentro. Ela não vai acreditar. E vai atacar quem disser o contrário, chorar ou se desesperar.
Há ainda o “viés de confirmação”, que se faz presente quando gostamos e nos sentimentos confortáveis com uma ideia. Então, só procuramos fatos que reforcem sua validade. É como quando alguém acredita que suco de abacaxi emagrece. Ele vai ignorar todos os alertas médicos e o bom senso, e “validar” para si mesmo apenas os “vídeos” que viu de gente que jura ter perdido 40 quilos com o suco. Pouco importa que existam apenas 10 vídeos de gente dizendo que emagreceu com abacaxi e 250 depoimentos de médicos afirmando o contrário. O “viés de confirmação” faz com que acredite apenas naquilo que reforça sua crença.
Para quem tiver curiosidade intelectual, vale ler as obras de autores e cientistas como Daniel Kahneman, Amos Tversky, Joseph LeDoux e Steven Pinker. Tá tudo bem explicadinho para quem tiver disposição de ler. É bom não só para aprender, como também para se autocompreender um pouco mais.
O paradoxal é que aqueles que estão contaminados pelo viés bolsonarista dificilmente vão ter interesse em tentar entender porque agem assim, apesar dos fatos, e muito menos disposição para mudar o próprio comportamento, porque nada percebem de errado.
Assim, para efeitos de parte significativa da população, a prisão do general Braga Netto, ou de tantos outros, o conjunto de evidências, os elementos concretos, a confissão de Mauro Cid, os relatos de Freire Gomes e Baptista Jr, nada disso muda a percepção deste grupo. Sentem-se perseguidos, “ungidos” por Deus para uma missão, acreditam que são os “mocinhos” e tudo isso vai continuar do mesmo jeito. Na melhor das hipóteses, por anos. Não é difícil que se estenda por décadas.
Enquanto isso, que se aplique a lei. A Constituição não é feita para a maioria, mas para todos. Leis não existem para serem cumpridas por alguns, mas por cada um de nós. Que os responsáveis pelos atos golpistas, pelos planos de assassinato de autoridades, por atentarem contra as instituições, sejam processados, julgados e, comprovada a culpa, punidos. Ainda que sejam generais, mesmo que tenham ocupado a presidência da República. Porque a lei não deve se sujeitar à aprovação popular nem depender dos humores da população, ou de parcela dela, para a sua aplicação.
Há um brocardo jurídico que bem resume este conceito. “Dura lex sed lex”. A lei é dura, mas é a lei. Que seja, então, aplicada. E todos, punidos. Especialmente, líderes como Braga Netto. E, se comprovada a culpa, que na percepção de quem tem dois neurônios é bastante óbvia, também seu líder, Jair Bolsonaro.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.