18 de dezembro de 2024
ARTIGO

‘Senna’ e a saga do herói


| Tempo de leitura: 3 min

Para quem nasceu até o final dos anos 1980, há uma pergunta em que possivelmente todo mundo vai saber responder: onde você estava quando Ayrton Senna morreu?

Eu me lembro bem! Era 1º de maio de 1994, Dia do Trabalhador, portanto, feriado nacional. Minha família fazia uma de suas rotineiras visitas à Gruta dos Anões, espaço próximo da natureza, no pé da Serra de São Pedro. Eu estava sentado na cantina do local comendo um frango empanado quando, na pequena televisão atrás do balcão, anunciaram que algo havia acontecido com Senna durante a corrida.

Apesar de não ter sido uma criança fissurada na Fórmula 1, fiquei, assim como todos, emocionado com o ocorrido.

Para uma criança como eu, o início dos anos 1990 era pura magia com uma televisão super engajada na programação infantil, as brincadeiras de rua em alta com amigos e vizinhança sempre por perto, sem a alta tecnologia atrapalhando nosso imaginário. No entanto, a vida dos adultos não estava tão legal assim.

Vamos lembrar que a Ditadura Militar acabou em 1985, a figura esperançosa de Tancredo Neves morreu no mesmo ano, dando a presidência ao nada carismático Sarney. Fernando Collor, eleito democraticamente, fez um estrago e colocou a auto-estima e a confiança do brasileiro abaixo do zero. E seu impeachment, em 1992, apesar de gerar alguma esperança, deixou o povo ainda à deriva.

No futebol, que já era o escapismo favorito do povo, o Brasil não ganhava uma Copa do Mundo desde 1970.

Sobrou para Ayrton Senna a função de trazer de volta o sorriso do brasileiro. Ou melhor, o motivo de sentir orgulho de ser brasileiro: um verdadeiro herói!

O Brasil de 1994, 30 anos depois, parece ter ocorrido em uma outra dimensão. Mas basta começar a assistir a série “Senna”, da Netflix, para entrar no túnel do tempo e se reconectar com o passado. E para contar a história do piloto, o roteiro segue um princípio básico para uma história bem contada: a Jornada do Herói.

A estrutura narrativa é amplamente utilizada e foi popularizada pelo mitólogo Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces (1949), que identifica padrões em narrativas de diversas culturas, condensando-os em um modelo universal em três atos principais.

O primeiro é a “Partida” (ou separação), quando o herói deixa o mundo comum para entrar em uma jornada desconhecida. Isso acontece com Ayrton quando, no início da vida adulta, ele deixa o Brasil para viver o sonho da Fórmula Ford, no Reino Unido.

A segunda parte da Jornada do Herói é a “Iniciação”. O herói enfrenta dificuldades, forma alianças e descobre quem são seus inimigos, aproximando-se do maior desafio.
Nem precisa dizer que Ayrton enfrentou vários “inimigos” na sua jornada, materializados no piloto Alain Prost, seu rival mais próximo.

O ápice do herói é enfrentar sua provação suprema. No caso de Senna foi vencer seu primeiro campeonato mundial.

O terceiro capítulo da Jornada do Herói é “O Retorno”, quando ele volta ao mundo comum, transformado pela experiência. Na série, Ayrton compete pela primeira vez no Brasil e visita uma favela, ficando mais próximo da realidade brasileira. Ele conversa com a irmã e fala sobre a vontade de criar uma fundação para ajudar os mais carentes.

Nesta etapa da Jornada vem a “Ressurreição”, uma última prova que demonstra a transformação do herói, levando conhecimento ou a dádiva que beneficiará a todos.
Neste ponto, a realidade atrapalha a Jornada com o triste fim do piloto em Ímola, na Itália.  
Se o herói Ayrton Senna não conseguiu completar sua jornada, o objetivo, no fim, foi o mesmo, com milhões de brasileiros sendo transformados por sua história.

De Star Wars a Senhor dos Anéis, a Jornada do Herói sempre foi usada como base para um roteiro perfeito, mas com a história de Ayrton Senna ela nunca foi tão real.