25 de dezembro de 2024
ARTIGO

Mistério Sempre Há de Pintar por Aí


| Tempo de leitura: 3 min

Maurício Kubrusly é um dos maiores repórteres televisivos do Brasil. Talvez você possa se lembrar apenas do nome dele, ou, quem sabe, apenas de seu rosto ou sua voz.

O impossível é nunca ter visto um de seus trabalhos, sejam escritos nos jornais que atuou ou televisivos, nos telejornais onde reportava notícias de diversas editorias.

Nascido no Rio de Janeiro, ele iniciou sua trajetória profissional na década de 1980, trabalhando inicialmente em rádios e jornais e se consolidando na Rede Globo.

Seu talento para comunicação e sua capacidade de se conectar com o público o levaram a se destacar, onde se tornou uma das figuras mais queridas do Brasil.

Era daqueles jornalistas que foram responsáveis por mudar a cara das sempre sérias e achatadas reportagens do telejornal brasileiro. Suas matérias criavam aquela quebra da quarta parede onde, além de reportar, Kubrusly interagia com o telespectador.

Aficionado por música, ele entrevistou as grandes estrelas nacionais e fez resenhas de seus álbuns, nem sempre agradando, mas nos fazendo ficar mais perto de nossos ídolos.

Ele também nos levou por viagens incríveis pelo Brasil, visitando todos os estados brasileiros em uma década de reportagens.

Esse texto, até aqui, parece mais um daqueles escritos feitos após a morte de uma personalidade. Mas é que, esse Maurício Kubrusly aí, de fato, desapareceu no passado.

Aos 79 anos, diagnosticado com Demência Frontotemporal (DFT) – condição progressiva e degenerativa que altera a memória, Maurício Kubrusly, agora, é outro.

Ele não se lembra mais de nada e nem de ninguém, mas a gente vai se lembrar dele, mesmo que seja com essa sua última história.

O documentário “Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” estreou nesta semana na Globoplay e mostra a rotina do jornalista junto à esposa, Beatriz Goulart, em uma residência no sul da Bahia.

Aos poucos, o doc vai nos apresentando a um Kubrusly envelhecido e com os olhos sempre arregalados, como um bebê que está descobrindo um mundo à sua frente.

Entre as dezenas de canções que ouve todos os dias, apenas uma parece reviver a memória de Kubrusly: “Esotérico”, de Gilberto Gil, lançada em 1976 e que em seus versos está o título do documentário.

Em uma das cenas, Kubrusly assiste Gil cantando a famosa canção pela TV e cantarola junto, como uma faísca de memória que ainda lhe resta.

Música é o combustível que move Kubrusly, algo que ele carrega de sua “vida passada”. Ao longo do filme, cenas dele entrevistando Elis Regina, Raul Seixas, Adoniran Barbosa, Chico Buarque, entre outros, parecem ser um universo paralelo daquela mesma pessoa.

Enquanto isso, Beatriz vai levando o espectador para a nova vida do jornalista. Ela está junto com ele há mais de 20 anos, e há sete vem convivendo com a doença.

Beatriz, inclusive, é a única pessoa que Kubrusly lembra do nome. Mas em uma cena de cortar o coração, Beatriz não está por perto e ele começa a gritar: “alô, alô, onde você está?”. A empregada da casa vai até ele, que a questiona. “Onde está a minha pessoa?”.

Passado mais da metade do filme, Kubrusly encontra-se com Gilberto Gil, autor da canção que ele cantarola quase todos os dias. Gil, com sua leveza de sempre, toca “Esotérico” para o antigo amigo, autor de tantos textos e reportagens sobre ele. É emocionante!

No documentário, Kubrusly, sem querer, atua como jornalista ao“reportar” a realidade impressionante da fragilidade humana em sua própria experiência.

O que somos, afinal, senão nossas memórias? E o que nos tornamos sem ela? O documentário nos faz pensar sobre essa construção.

Muito se fala sobre a alma ou qualquer coisa que se acredite existente fora da carne e osso. Mas basta que nosso cérebro atrofie para “desaparecermos” ainda em carne.

Talvez, no fundo, essa coisa de viver não seja algo tão esotérico assim.