04 de maio de 2025
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ARTIGO

Um sonho que deu muito o que falar


| Tempo de leitura: 3 min
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Os sonhos que temos diariamente enquanto dormimos são tão frequentes que geralmente os esquecemos. Embora muito estudados pela Ciência, ainda constituem objeto de incerteza para médicos, psicólogos, cientistas religiosos... e até (como se dizia jocosamente nos meus tempos de menino) Doutores em Ciências Ocultas e Não Sabidas!

Os mistérios que envolvem os sonhos suscitam a imaginação e, ao mesmo tempo, despertam inquietação e curiosidade no espírito humano no que diz respeito ao futuro e à vida post-mortem. Em todas as culturas humanas, os sonhos quase sempre foram vistos como uma espécie de portas que possibilitam alguma forma de acesso a realidades transcendentes, de uma outra dimensão.

A própria Bíblia contém dezenas de referências a sonhos, por vezes apontando-os como meios pelo qual Deus se comunicou com alguns escolhidos (por exemplo, com Jacó e José, no Antigo, e com Zacarias e São José, no Novo Testamento) e por vezes premunindo os fiéis contra a tendência supersticiosa de acreditar em todo e qualquer sonho.

Um sonho registrado apenas de passagem, na Bíblia, foi muito discutido e até hoje não existe consenso sobre seu real significado. Refiro-me ao célebre sonho que teve a esposa do governador romano Pilatos, que ficou muito preocupada com a prisão de Jesus Cristo, porque receava que seu marido o condenasse. Tal preocupação a atormentou nos sonhos e a levou a aconselhar o marido a que nada fizesse contra Jesus. A referência bíblica é, como disse, apenas de passagem: “Enquanto ele estava sentado no tribunal, sua mulher mandou-lhe dizer: Nada haja entre ti e esse justo, porque fui hoje muito atormentada em sonhos por causa dele” (Mt 27,19).

Tal episódio foi objeto de interpretações conflitantes e bastante curiosas, por parte dos exegetas e comentaristas da Escritura. Há autores que consideram o sonho da esposa de Pilatos como tipicamente natural, sem nenhuma intervenção de natureza sobrenatural, tendo sido produzido tão-só pela grande preocupação que a prisão de Jesus Cristo tinha causado na mulher. Essa é a posição do erudito Pe. Henri Lesêtre, um dos coautores do clássico “Dictionnaire de la Bible” (Paris, 1911).

O exegeta Cornélio a Lapide cita, nos Commentaria in Matthaeum, cap. XXVII, 18, alguns autores que atribuem a inspiração dos sonhos da mulher de Pilatos a Deus, pelo ministério de algum santo anjo. Entre esses autores, elenca Orígenes, S. Hilário, S. Jerônimo, S. João Crisóstomo, Eutímio, Teofilato, Jansênio, Maldonado, S. Agostinho e S. Ambrósio. As razões dessa posição: 1) era conveniente que a inocência de Cristo, que já tinha sido declarada de público por Pilatos, também o fosse por alguém do sexo feminino, de modo que todos os elementos da humanidade estivessem representados nessa declaração; 2) convinha, como expôs S. João Crisóstomo, que sonhasse a mulher e não o marido, porque se Pilatos tivesse recebido o sonho tê-lo-ia guardado para si, em segredo, e não o teria tornado público, diante dos príncipes e dos judeus, como fez a mulher: 3) convinha que a mulher de Pilatos (que se chamava, segundo a tradição, Cláudia Prócula, e parecia ser pessoa honesta, piedosa e inclinada à misericórdia), viesse a conhecer, por meio desses sonhos, que Jesus era o Messias Salvador do mundo, nele cresse e, assim, se salvasse. A Lapide cita ainda o Evangelho de Nicodemos “que, apesar de apócrifo, contém muitas coisas verdadeiras e dignas de respeito”, segundo o qual, quando a mensagem de Prócula foi transmitida em voz alta a Pilatos, os judeus que acusavam a Jesus interpelaram o governador, dizendo: “Porventura não te dissemos que esse homem faz malefícios? Eis que ele mandou um sonho à tua mulher”.

Alguns autores, entre os quais S. Bernardo, S. Cipriano, Caietano, Lirano, Cartusiano,  Barônio e Barrádio, consideram que os sonhos da mulher de Pilatos lhe foram enviados pelo demônio, porque este já estava convencido, àquela altura da Paixão, de que Jesus era o Messias Salvador, e queria impedir que por sua morte fosse salva a humanidade. Na iconografia cristã, há exemplos de representações nos dois sentidos, pois ora aparece a mulher dormindo e tendo ao lado um anjo, ora ela aparece com um demônio que lhe inspira o sonho.